HANCOCK, Caroline — “Pontos de Convergência”, in Femme qui passe, Artes, projecto de Arte Contemporânea, Fundação Manuel António da Mota, Porto, pp. 32-47.


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Fechemos os olhos e observemos atentamente o que acontece no nosso campo de visão. Quando questionadas, muitas pessoas dirão que nada acontece, que não vêem nada. Não é de admirar, pois é preciso uma certa prática para que alguém consiga auto-observar-se de modo satisfatório. Mas basta dar a atenção necessária para, gradualmente, se conseguir distinguir várias coisas. Em primeiro lugar, em geral, um fundo negro. Neste fundo negro, pontos brilhantes que ocasionalmente vão e vêm, subindo e descendo, lenta e calmamente. Com frequência, manchas de muitas cores, umas vezes pálidas, outras, pelo contrário, para certas pessoas, tão brilhantes que a realidade não se lhes pode comparar.
Henri Bergson, Sonhos (1)

Sonhos, a palestra dada por Henri Bergson em 1901, em que o autor propõe esta actividade e aborda as suas consequências, foi um dos textos referidos por Isabel Carvalho como tendo sido fundamental para a sua demanda. Conhecemo-nos há dois anos atrás, uma noite, num café, quando ela me falou pela primeira vez do seu sonho de prestar homenagem a uma outra artista do Porto, Aurélia de Sousa. Na altura, recomendou-me vivamente que visitasse as coleções que mostram o trabalho desta artista, conselho que prontamente segui no dia seguinte, o último da minha estadia, poi a minha curiosidade havia sido despertada. Recentemente, Isabel Carvalho convidou-me a regressar ao Porto, uma vez que o seu projecto está prestes a concretizar-se. Ao longo de vários anos, Isabel Carvalho iniciou um processo que consistiu em reunir informação, reflectir e trocar ideias sobre esta artista, cuja actividade se desenvolveu há 100 anos atrás. Há muito pouca informação sobre Aurélia de Sousa em qualquer outra língua que não o português. Uma vez que consigo apenas decifrar ideias gerais com grande esforço e a um ritmo lento, o meu conhecimento da história de arte portuguesa é extremamente limitado, senão inexistente. Por isso, Isabel Carvalho iniciou um paciente processo de tradução, síntese e análise para acompanhar a minha imersão no tema. Grande parte desse trabalho esteve na base deste texto.

Nessa noite, caminhamos, sob uma chuva miudinha cada vez mais insistente, em direcção ao local onde o projecto terá agora lugar, nas próximas semanas, iniciando aí uma visita guiada pela cidade, matizada pela figura de Aurélia de Sousa. No século XIX, o Porto era um porto industrial em expansão, uma cidade internacional que atraía arquitectos e engenheiros como Gustave Eiffel, com o intuito de construir pontes, hospitais, estações e outros edifícios altamente inovadores. A comunidade mercantil inglesa estava firmemente estabelecida na cidade desde o século XVII por causa do comércio, mas os laços culturais eram particularmente fortes sobretudo com França. A cidade é frequentemente descrita como um microcosmos romântico, que o Museu Romântico da Quinta da Macieirinha procurou captar. O ennui, a auto-destruição ou sacrifício, e a ansiedade descrita por Gustave Flaubert ou as irmãs Brontë poderiam ser úteis para criar essa atmosfera. Depois de atravessar ruas carregadas de História, parámos diante de imponentes conjuntos habitacionais contemporâneos, olhando o espaço de vidro que tinha antes sido um salão de vendas e agora acolhia exposições de arte. É aqui que “isso” vai acontecer.

Múltiplas luzes urbanas brilhavam neste cenário molhad pela chuva, à medida que os carros e alguns, poucos, transeuntes passavam ao longe. Como irá Isabel Carvalho ocupar e revelar este palco curioso, tendo a sua distinta predecessora em mente?

Aurélia de Sousa, uma das mais importantes artistas portuguesas, começou a sua educação artística na pintura e no desenho relativamente tarde, com António da Costa Lima. Estudou depois com João Marques de Oliveira, sobretudo Pintura Histórica, na Academia de Belas Artes do Porto, a partir de 1893. Juntamente com Silva Porto, João Marques de Oliveira tinha viajado para França nos anos setenta do século XIX e havia regressado a Portugal para introduzir o Naturalismo. Aurélia de Sousa nasceu no Chile, em 1866, a família dela esteve temporariamente emigrada para acompanhar o seu pai, cujo negócio estava ligado à construção de caminhos-de-ferro. Este parece ter sido um dado de grande importância para ela, uma vez que lutou toda a sua vida para renovar regularmente o seu passaporte chileno e manter a especificidade da distância e o estatuto de estrangeira. Como se ser ou permanecer uma estranha fosse essencial para o entendimento da sua própria subjectividade ou vis-à-vis o seu lugar no mundo. Ao regressarem a Portugal, o seu pai comprou a Quinta da China do século XVIII perto do Porto (hoje próxima da estação de comboio de Campanhã), na margem norte do rio Douro. Foi neste ambiente calmo e próspero que Aurélia de Sousa viveu grande parte da sua vida. Retratou frequentemente vistas esplêndidas e interiores confortáveis, ainda que escuros. Segundo dizem, as enormes e espantosas cameleiras que hoje aí se encontram existiam já no tempo da pintora. Isabel Carvalho e eu percorremos esse lindíssimo espaço, no dia seguinte, numa longa caminhada ligeiramente humedecida pela chuva, apreendendo o lado Este da cidade, ao longo do rio e até ao mar, seguindo os possíveis passos da pintora. A vida de Aurélia de Sousa no Porto parece ter-se movido entre a modernidade e o conservadorismo: incluía ciclismo, banhos gelados no oceano, um vizinho dinamarquês e amigos de Berlin, fotografia e cinema, dar aulas a meninas na Quinta, religião e superstição. Aurélia de Sousa nunca casou mas teve o apoio e o mecenato da sua família. Muitas das suas irmãs casaram com maridos abastados e financiaram de diferentes formas os seus estudos artísticos e as suas viagens, e coleccionaram a sua obra. Este apoio parece ter implicado contrapartidas sobre as quais discutimos demoradamente.

Por volta dos seus trinta anos, Aurélia de Sousa foi para Paris, entre 1899 e 1901, para estudar na reputada Académie Julian (criada em 1868 por Rodolphe Julian), onde frequentou os cursos relativamente clássicos de Jean-Paul Laurens e Benjamin-Constant. Os dois artistas eram conhecidos pela história rigorosa e pela pintura religiosa. Imaginá-la na capital das artes neste momento de viragem entre dois séculos, durante a Exposição Universal de 1900 de Paris, numa altura de grande optimis- mo relativamente ao progresso moderno, exposta como deve ter estado a diferentes valores e liberdades sociais, é, claro, mera especulação. O cert é que este contexto deve ter contribuído para algumas mudanças no modo como ela percepcionava o mundo e para uma consciência mais ampla de práticas artísticas mais vanguardistas. Os poemas de As Flores do Mal (1957), de Charles Baudelaire, tornaram-se uma das suas leituras favoritas. Durante este período, ela passou também algum tempo em Étaples, perto de Boulogne-sur-Mer, no nordeste de França, e dois Verões na Bretanha, seguindo os passos do grupo simbolista Nabis, saído da Académie Julien, que haveria de se tornar famoso dez anos antes. O desenho de Femme qui passe (c. 1900) que ela fez na Bretanha demonstra um grande interesse por um trabalho de tipo pré-Giacometti. A sua irmã Sofia, também ela artista, juntou-se a Aurélia, e, em 1902, ambas viajaram pela Europa, também com o intuito de visitar os mais importantes museus em Bruxelas, Antuérpia, Berlim, Roma, Florença, Veneza, Madrid e Sevilha. Registaram-se ainda algumas deslocações ocasionais (incluindo a vilas termais para tratamentos de saúde) até à data da sua morte, em 1922, embora a sua vida tenha estado principalmente ligada ao Porto.

A obra de Aurélia de Sousa inclui paisagens e cenas da vida quotidiana doméstica. As experiências imediatas no Porto são a sua fonte artística principal. O seu estilo tendia para um Realismo figurativo ou Naturalismo, continuando nessa direcção mesmo depois dos seus estudos em Paris, com resquícios de efeitos simbolistas e impressionistas nas suas paisagens (embora de forma menos proeminente do que na obra do seu conterrâneo António Carneiro). Os seus temas incluíam interiores tenebrosos, localidades e paisagens inspiradas na zona do Douro, os jardins e as plantas da Quinta, crianças e mulheres a trabalhar (a ler ou a coser), intercaladas com um tratamento mais negro, contemplativo, quase místico da Visitação, de adros e de ateliers. Poderá isto indiciar a expressão de experiências separadas em tempos de mudança, desde as luzes verdes da Paris cosmopolita até ao cenário rural da Quinta, ao qual regressou? Isabel Carvalho admitira já uma profunda identificação com Aurélia de Sousa e, por conseguinte, consegue interrogar livremente o que estará por detrás do trabalho da autora, de modo a revisitar a sua interpretação e a dar um passo em frente, abrindo espaço para o aparecimento de novas perspectivas nos dias de hoje.

Segundo alguns autores, Aurélia de Sousa foi particularmente inspirada por artistas como Velázquez, Rembrandt, Franz Hals, Jan Steen, Gerard Terboch, Holbein, Van Dyck, William Hogarth, Thomas Lawrence, Edouard Manet, Claude Monet (2). Mas tê-lo-á sido também por James Abbott McNeill Whistler, cuja Académie Carmen, em Paris, esteve em actividade entre 1898 e 1901; de facto, o seu Retrato da Mãe da Artista D. Olinda Perez de Souza (c. 1900) é comparável ao quadro de Whistler, Arrangement in Grey and Black: Portrait of the Painter’s Mother [Arranjo em Cinzento e Preto: Retrato da Mãe do Pintor] (1871, óleo sobre tela, Museu d’Orsay, Paris).

Os auto-retratos eram possivelmente o seu género favorito; pelo menos, esses parecem ter sido os trabalhos que mais fama póstuma lhe trouxeram. Embora os fundos sejam mínimos e de composição rígida, o tratamento do seu próprio Eu, sozinho, tende a ser mais lúdico e livre, cheio de ironia e humor, desde o seu Auto-retrato com um laço preto gigante ao pescoço (c. 1897) até ao enigmático auto-retrato como Santo António. Por outro lado, o seu Auto-retrato com um casaco vermelho, a intensidade do seu olhar e o contacto visual estabelecido com o espectador é praticamente um momento de verdadeiro confronto.

Paralelamente, Aurélia de Sousa fez com regularidade ilustrações e caricaturas para revistas e para o livro de conto Perfis Suaves, de Júlio Brandão. Tal como o indicam as reproduções em placas de vidro nas suas monografias, Aurélia de Sousa começou a usar a fotografia muito cedo na sua carreira. Aurélia foi treinada nesse medium por um vizinho, Aurélio da Paz dos Reis (1862-1931, que fotografou a Exposição Universal de 1900, em Paris), e construi o seu próprio estúdio para desenvolver as fotografias que ela usava para substituir os esboços, e pelo puro prazer de documentar o que a rodeava e o seu trabalho como pintora. Este interesse, manifestado desde cedo, por uma nova tecnologia prova a sua abertura à experimentação nos bastidores. Parece evidente que, na altura, Aurélia de Sousa não apresentava as suas fotografias como trabalho artístico, mas esta especificidade da sua prática de estúdio demonstra já como ela procurava forçar os limites da convenção.

Bastante significativo, e sem dúvida interessante, é o facto de Aurélia de Sousa ter deixado de datar os seus quadros depois da sua estadia em Paris, como se quisesse evitar qualquer noção de “progressão” estilística na sua obra ou a comparação com o meio artístico das capitais de cidades cosmopolitas. A lealdade e a obediência à sua família constituíam laços fortes com o Porto. O seu respeito por padrões de moralidade social e as possibilidades limitadas de uma mulher artista em Portugal naquela altura poderão ter determinado o seu confinamento a um certo modo de trabalhar, que pode parecer tradicional a um olhar informado relativa- mente ao contexto mais amplo da criatividade europeia contemporânea. Seria esta uma tentativa deliberada de evitar a controvérsia ou teria sido este o percurso artístico que ela havia escolhido livremente?

Tanto no seu tempo como actualmente, a reputação a nível nacional de Aurélia de Sousa é inquestionável. Em Agosto de 2014, a exposição permanente da coleção do Museu Nacional Soares dos Reis, no Porto, apresentou quatro pinturas de Aurélia de Sousa. O seu famoso Auto-retrato (c. 1900) com o casaco vermelho é imponente, confrontando o espectador directamente, numa parede individual, mal se entra na sala. Mais além, a exposição inclui também Cena familiar (1911), Memorial (sem data), e Visitação (sem data). Mas o repositório principal de uma selecção do seu trabalho — incluindo cadernos de esquissos, fotografias e materiais — é a Casa Museu Marta Ortigão Sampaio, construída pelo arquitecto José Carlos Loureiro em meados dos anos cinquenta do século XX, na Rua Nossa Senhora de Fátima. A irmã de Aurélia de Sousa, Maria Estela de Souza, casou com Vasco Ortigão Sampaio, sendo a já referida Marta sua filha e sobrinha de Aurélia. Nascida em 1897, Marta deixou a casa e os seus pertences à cidade do Porto quando faleceu em 1978. Esta coleção contempla ainda obras de outros artistas contemporâneos da pintora, incluindo Marques de Oliveira, Silva Porto e Sofia de Sousa, bem como as jóias e a arte decorativa da família. O interior é típico dos interiores burgueses portugueses da altura. Num quarto do andar superior, há um painel com um cartoon de uma figura humanóide próxima de um coelho, pintada por Aurélia para Marta, quando esta era criança. O repertório do início do século XX de Beatrix Potter, com todo o seu universo lúdico bem-humorado, terá sido a font de inspiração. Foi um pouco surreal visitar esta Casa Museu pela segunda vez, com guias que sistematicamente partem do princípio de que os turistas nada sabem sobre a arte de Aurélia de Sousa. Mal imaginavam eles que eu acabava de ter uma lição de história de arte detalhada e personalizada, bem como uma visita guiada especificamente sobre a pintora, e que, portanto, estava ansiosa que me deixassem sozinha a contemplar os seus quadros. Para o efeito, este contexto pode ser, de facto, mais útil do que o da exposição do Museu anteriormente citado, onde a apresentação linear me pareceu um pouco cínica e apologética. Porém, na Casa Museu, se se ficar durante mais tempo do que o previsto, as luzes apagam-se e temos de dançar para activá-las de novo. Felizmente tive a oportunidade de ter essa experiência porque a minha guia ficou tão entediada, à medida que fui examinando as pinceladas soltas das mãos do Santo António, que me deixou sozinha para atender outros visitantes.

Claro que um aspecto-chave para Isabel Carvalho e para outros artistas é que Sofia, a irmã de Aurélia, mereceria ser mais conhecida e, de facto, ela tem menos visibilidade. Concentrando-se em retratos, interiores e naturezas-mortas, o seu trabalho tende a ter menos gravidade; no entanto, a humanidade e a sensibilidade no seu quadro surpreendente de uma mulher a rir, integrado na colecção da Casa Museu, aponta para um dom de capturar a vida com espontaneidade. Uma investigação na área da história de arte no futuro poderá vir a dar o devido valor a um capítulo que está obviamente ausente e, com certeza, subestimado. 

No caso de Aurélia de Sousa, é essencial mencionar um momento-chave da sua visibilidade internacional durante a exposição 1900: Art at the Crossroads (3), organizada na Royal Academy, em Londres, e no Museu Guggenheim, em Nova Iorque, por Maryanne Stevens e Robert Rosenblum em 1999-2000. A atenção recaiu inteiramente sobre um quadro emprestado para a ocasião: o Auto-retrato (c. 1900) com casaco vermelho. Este projecto colocou o trabalho dela lado a lado com o dos seus pares finisseculares, como Auguste Rodin, Franz von Stuck, Thomas Eakins e Gwen John. De entre as poucas outras mulheres artistas aí representadas estavam Harriet Backer, Cécilia Beaux, Mary Cassatt, Camille Claudel, Elin Danielson-Gambogi, Paula Modersohn-Becker, e Clara Southern. Afinal, talvez a prática de Aurélia de Sousa não estivesse tão longe assim do cânone daquela altura.

Quando Isabel Carvalho falou comigo, tinha estado a pensar em como comparar Aurélia de Sousa a outras artistas do seu tempo, cujas obras e dificuldades eu já conhecia. De repente, pensei nos quadros de Gwen John (1876-1939); portanto, ao ver este paralelo distante nas páginas desse catálogo senti reforçada a minha intuição. O contexto e o trabalho de ambas são, como é óbvio, diametralmente diferentes e específicos, mas é interessante comparar duas artistas que desenvolviam a sua actividade no início do século XX em cidades importantes, embora consideradas culturalmente estagnadas no que diz respeito à modernidade que rapidamente se espalhava, e que tinham ambas beneficiado das suas estadias em Paris, a Cidade das Luzes. John nasceu no País de Gales no Reino Unido, sendo irmã do pintor Augustus John, sempre mais famoso; estudou na Slade School of Art, em Londres (1895-1898), e foi depois para Paris, onde frequentou a Académie Carmen de Whistle. Regressou a Londres, em 1899, e expôs no New English Art Club; regressou depois a Paris no início de 1904. Em 1906, conheceu Rodin e tornou-se sua amante e modelo, e a sua paleta mudou de tons castanhos quentes para malvas, azuis e cinzentos frios. Relativamente pouco confiante, ela trabalhou devagar com composições semelhantes de retratos, interiores e naturezas-mortas. Mas o seu Auto-retrato datado de 1902 (óleo sobre tela, Tate Gallery, Londres), onde está sentada com uma blusa vermelha e um broche no pescoço, pode oferecer surpreendentes pontos de contacto com o Auto-retrato de casaco vermelho de Aurélia de Sousa. Apesar de o seu busto estar mais distante da moldura, ela tem uma postura igualmente frontal em relação ao espectador. Em desafio subtil e deliberado, ou certamente em diálogo directo com o seu público.

Embora o quadro mais referido seja sempre o auto-retrato de Aurélia de Sousa com um casaco vermelho, Isabel Carvalho escolheu centrar-se neste curioso e enorme auto-retrato, de corpo inteiro, da pintora como Santo António: Santo António (c. 1902 óleo sobre tela, 1890 x 999
cm, Casa Museu Marta Ortigão Sampaio). António de Pádua (1195-1231) nasceu Fernando Martins de Bulhões, em Lisboa. Depois de ingressar na Ordem Franciscana, então recentemente fundada, foi para Itália, onde viria a ser particularmente admirado pela sua pregação, ensinamentos e hospitalidade. As representações características deste santo incluem gestos com as mãos cheios de expressividade e o humilde hábito castanho com um cordão à cinta e um capuz que cobria os ombros. Há também um desenho de Aurélia de Sousa na mesma coleção de um jovem com um capuz franciscano datado de 26.3.94. Esta escolha, em termos de representação, é bastante intrigante no contexto de uma obra tão recatada como a dela. Aparentemente a artista ucraniana Marie Bashkirtseff (1858-1884), que havia também estudado na Académie Julian, vestia-se de franciscano sempre que se achava triste. Será este quadro uma revolta disfarçada, silenciosa, ligeiramente irreverente contra a sua situação ao regressar ao Porto? O gesto expressionista da mão parece requerer permissão para falar ou calar. Poderá a posição exacta das mãos simbolizar alguma coisa? Será a cruz, na parede ao fundo, maçónica? O Vale do Douro e os seus agitados negócios também escondiam sociedades esotéricas secretas.

Aurélia de Sousa posou para um estudo fotográfico não só com este disfarce Fransciscano e masculino, mas também como Madalena. Neste caso, a sua atitude revela potenciais paralelos com o uso que Charcot faz da fotografia como ferramenta no seu estudo da histeria, ou com as fotografias de Alice (no País das Maravilhas) Liddel e da sua família, tiradas por Lewis Carroll. Num artigo sobre as fotografias de Claude Cahun e Lee Miller nos anos 20 e 30 do século XX, Whitney Chadwick escreve: “A possibilidade de mobilidade de género implícita na escolha de estilos de roupa neutros também caracterizou a roupa do dandy, uma outra figura de ambiguidade sexual com uma longa tradição visual. Do herói moderno de Charles Baudelaire ao artista cosmopolita de James McNeill Whistler, passando ainda pelo esteta extravagante de Montesquieu, na arte moderna o dand – sempre elegante, distante, atento – cruzou as fronteiras do género e da classe. O dandy, tal como o homossexual, estava fora da cultura burguesa, escarnecendo das convenções relativas ao modo de vestir e aos papéis sociais.” (4) As experiências de Claude Cahun ou Marcel Duchamp como Rrose Selavy, as performances transgénero e o travestismo pressionam os limites do território do Eu enquanto imagem, desafiando noções de feminilidade e masculinidade.

Sem ir tão longe no caso de Aurélia de Sousa, o auto-retrato como Santo António foi certamente um sinal de auto-exploração, testando zonas internas e externas de aceitabilidade e inaceitabilidade com um forte sentido de contenção, face a um mundo de preconceito, para o qual provavelmente era considerado mais sensato evitar educar as mulheres. O poderoso, mas subjugado, sentido do ridículo que brota deste quadro traz consigo a violência da caricatura. Terá esta inversão produzido um efeito cómico na altura? Mascarar-se não era incomum no seu círculo, como o sugere uma fotografia de família tirada em Sevilha, em que todos estão vestidos com roupas orientais. A identificação intelectual andrógina de Aurélia de Sousa com a figura de um santo respeitado pode ser interpretada como uma vontade velada (ou encapuçada) de escapar ou de proteger do exterior uma identidade interna. Isabel Carvalho é extremamente sensíve a esta complexa rede de paradoxos, que ela reconhece neste quadro. No seu processo de pesquisa, ela imagina que o carapuço negro se transforma num acessório urbano moderno (via clérigo ou academia) para egos que desvanecem, tentando perder a sua identidade e misturar-se com a multidão. Questionar a auto-identificação está, portanto, no âmago desta pesquisa, que procura estabelecer uma distância para com o seu sujeito, ao tentar libertar Aurélia de Sousa do seu status quo e trazê-la para o presente. Isabel Carvalho contou-me como a narrativa se adensou quando ela descobriu mais sobre Aurélia de Sousa e começou a levar em conta o envolvimento que ambas têm em comum com e na cidade do Porto, embora com cem anos de diferença. A cidade mudou. Mas há algo que foi capturado pelos tempos românticos que permanece. Há uma estranha permanência ao longo do Douro. O velho sonho de luzes verdes e pirilampos de Isabel Carvalho veio à tona como uma espécie de chave enigmática para as potencialidades libertadoras daquilo que ela está prestes a tornar evidente.

Todos estes elementos, combinados com o convite endereçado por Luísa Mota a Isabel Carvalho para pensar num projecto para a Fundação Manuel António da Mota, no Porto, em Outubro de 2014, revelaram-se uma oportunidade para impulsionar uma experiência no palco aberto de vidro que é o espaço ARTES e a sua envolvente. A paisagem adjacente, de tipo ágora, os blocos de habitação, o Hospital de Santo António e o Museu Soares dos Reis, ali ao lado, tornam-se personagens centrais no ambiente criado. De entre os adereços carregados de significado poderão estar camélias, carapuços ou capuzes negros, pirilampos e luzes verdes, cobras e sonhos. Memórias, conhecimento. Isabel Carvalho, a autora, poderá ter escrito uma peça inspirada nos “pontos brilhantes que ocasionalmente vão e vêm” de Bergson. No que diz respeito a Aurélia de Sousa e a Santo António, ela converte as cores escuras do quadro em luzes verdes luminosas. Luzes de trânsito: vermelho para parar; verde para seguir. A convergência procura libertar-nos dos laços passados e abrir possibilidades criativas futuras. Fechemos os olhos e observemos com atenção.


1. Henri Bergson, Dreams, trans. Edwin E. Slosson, B. W. Huebsch, New York,
1914, p.16. (Acedido em Setembro de 2014: http://www.gutenberg.org/ files/20842/20842-h/20842-h.htm). Este texto foi apresentado pela primeira vez sob a forma de uma palestra, dada por Bergson ao Institut psychologique, em Paris, a 26 de Março de 1901.
2. Referências bibliográficas: Raquel Henriques da Silva, Aurélia de Sousa, ed. INAPA, Lisboa, 1992; Maria João Lello Ortigão, Aurélia de Sousa em contexto a cultura artística no fim de século, INCM Imprensa Nacional Casa de Moeda, Lisboa, 2006; Adelaide Duarte, Aurélia de Sousa: [artista de transição: século XIX-XX], QuidNovi, Matosinhos e Instituto de História da Arte, Lisboa, 2010.
3. 1900: Art at the Crossroads, catálogo da exposição publicado pela Royal Academy, Londres e pelo Museu Guggenheim, Nova Iorque, 1999. Outro momento foi: Soleil et ombres. L’art portugais du XIXe siècle, Musée du Petit Palais, Paris, 1987- 1988, Paris Musée/ AFAA, 1987. Esta exposição incluiu os seguintes 4 quadros de Aurélia de Sousa: Cena Familiar (sem data), Interior (sem data), Auto-retrato (sem data, com casaco vermelho) e Paisagem (c. 1900, de Lisboa).
4. Whitney Chadwick, “Claude Cahun and Lee Miller. Problematizing the Surrealist Territories of Gender and Ethnicity”, in Gender Nonconformity, Race and Sexuality, ed. Toni Lester, University of Wisconsin Press, Madison, p. 155.
2014