ROSENDO, Catarina — “Isabel Carvalho”, in Tudo o que eu quero / All I want; artistas portuguesas de 1900 a 2020 / Portuguese women artists from 1900 to 2020, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2021, pp. 304-306


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Isabel Carvalho formou-se em Pintura na Escola Superior de Belas Artes do Porto, em 2000, onde foi aluna, entre outros, do pintor Álvaro Lapa (1939-2006), autor da frase «a linguagem afastar-se-á do consenso e exprimirá o desejo e a imaginação”, que caracteriza bem o geral da proposta desta artista. A sua obra constrói-se num permanente equilíbrio entre as artes visuais e a escrita, num jogo de tensões que tem como base a linguagem e o seu potencial criador e transformador. Desenhos, pinturas, objectos, esculturas e instalações integram a faceta mais reconhecivelmente artística do seu trabalho, para além de diversas práticas colaborativas e uma constante produção editorial sob a forma de livros, cartazes e publicações de artista, e de leituras performativas em público onde o acto da fala é crucial. Mediante um processo de trabalho apoiado em investigações e metodologias simultaneamente científicas e especulativas onde a vontade de saber é indissociável da imaginação, Isabel Carvalho explora a linguagem enquanto construção cultural que define e delimita a compreensão sobre todas as coisas, e dedica-se a auscultar o lugar das práticas artísticas contemporâneas na aferição do papel da comunicação não verbal, da atenção e de uma predisposição geral (e radical) para o cuidado.

Até cerca de 2011, o recurso intensivo a plataformas digitais, como o blogue White Pony Cab, activo entre 2005-2010, e a criação e envolvimento em projectos participados e colaborativos, como a residência artística comunitária A Casa é Sincera, implementada a partir do Laboratório das Artes em Guimarães em 2007, ou o blogue e posterior livro de pequenas narrativas em co-autoria com Ana Carvalho, Latido de Cachorro e Latidos, de 2009-11, serviram para instigar e abrir o campo de trabalho da artista. Ao longo desses anos, Isabel Carvalho dedicou-se, por exemplo, à organização de cozinhas comunitárias, à venda de livros, a emissões radiofónicas, à realização de concertos de música e de spoken word, à manutenção regular de diversos blogues e sítios web e a uma prática do desenho influenciada pelas ilustrações infantis e pelo imediatismo expressivo dos fanzines punk e dos grafittis adolescentes.

Se algumas das suas propostas deste período enformaram uma pesquisa sobre o desejo e o erotismo na construção da identidade feminina, como é o caso do blogue participado Wanda, de 2006, ou abordaram questões de género, desdobradas nas suas múltiplas dimensões feministas e queer, no geral o seu trabalho apoiava-se no registo diarístico de acontecimentos banais e centrava-se em estratégias de disseminação e apresentação convencionalmente não artísticas, como as redes sociais. Entre a indisciplina e a pós-disciplina, desfazendo distinções entre cultura erudita e cultura popular, interessada nos gestos triviais e amadores, promovendo a desapropriação autoral e objectual, e perseguindo uma espécie de estilo sem estilo, Isabel Carvalho ocupou-se em trabalhar as mediações passíveis de configurarem encontros, trocas e convivialidades de toda espécie, movimentos relacionais e fluxos comunicativos sem códigos especialmente estabelecidos nem fins previstos.

O seu envolvimento com a editora Braço de Ferro, que manteve com o designer gráfico Pedro Nora entre 2007-2011, segue um pouco as mesmas premissas, ao mesmo tempo que oferece à artista um campo de experimentação plástica e conceptual com um dos seus objectos de eleição, o livro, em particular o livro de artista, e com o universo da edição e da impressão. Funcionando como uma pequena estrutura em modelo de auto-publicação, a Braço de Ferro, para além do importante papel desempenhado no registo e documentação da dinâmica e independente cena artística portuense da altura, permitiu uma produção continuada de livros, cartazes e convites com um estatuto híbrido entre o documento e a obra, em que a ênfase no baixo custo e na distribuição foi entendida como essencial para a valorização da dimensão social e pública do livro e da edição.

A vontade de Isabel Carvalho em transpor a exploração das componentes funcionais e das lógicas de criação de sentido inerentes ao livro e à página impressa para o espaço real subjaz ao projecto Navio Vazio, de 2010-2012. Funcionando como uma extensão da editora, com o carácter temporário, experimental e tridimensional de uma exígua sala alugada com saída directa para a Rua da Alegria, no Porto, o Navio Vazio serviu para apresentar projectos gráficos e editoriais e realizar vendas. O espaço, preparado, de cada vez, para ser um lugar de encontro e sociabilização, punha em cena uma sobreposição de dispositivos: a decoração doméstica pequeno-burguesa, a instalação artística, a exposição temporária, a conversa, o bazar ou o lançamento de livros e edições, numa indistinção de meios que é uma das marcas do trabalho da artista.

As actividades do Navio Vazio consolidaram a sua obra artística como indissociável de uma contínua produção editorial que sempre explora e desenvolve pressupostos contidos nas suas exposições. Os livros e edições por si concebidos combinam imagens com os mais variados géneros literários, do ensaio à memória descritiva, passando pelo conto, e implicando por vezes técnicas afins da poesia concreta ou das découpages dadaístas.

É o que acontece com Os cantores dos planaltos fundem linguagens, de 2013, que Isabel Carvalho realizou no decurso da sua residência artística na Kunstlerhaus Bethanien, em Berlim, e a partir de uma viagem de trabalho a Essaioura, Marrocos, que visou explorar o seu interesse pelo conceito de “tropismo”, desenvolvido pela escritora francesa Nathalie Sarraute em 1932 e referente aos movimentos interiores, semiconscientes, que antecedem as acções e as palavras. As placas gravadas que compõem este objecto de parede podem ser manuseadas e/ou lidas sem ordem predefinida. Em cada uma delas, um conjunto de seis varetas, cujas posições relativas são sempre diferentes, é acompanhado por uma inscrição textual, com também seis palavras, cuja sintaxe a artista construiu de forma controladamente aleatória através daquilo que descreveu como uma “máquina lúdica de criar texto”. Frases como “os empurradores de fronteiras comprometem tolerância”, “os agrupadores de abelhas constituem riquezas” ou “as carpideiras de capital douram resignações”, apontam para uma atenção redobrada à ecologia, à alimentação e à economia, ao mesmo tempo que exploram a complementaridade das linguagens verbal e visual numa produção de sentido que busca as relações dinâmicas passíveis de reter e ampliar as complexidades das subjectividades envolvidas nos processos de comunicação.

Estes temas são continuados nas obras Léxico CB e Nomeação de CB, as quais remetem para Clara Batalha, o heterónimo (que remonta ao tempo do Navio Vazio), com que Isabel Carvalho ficciona uma componente colaborativa para algumas das suas obras. Educadora particular envolvida na geometria, nas artes decorativas, nas edições, na apicultura e no activismo ambiental, e com um nome que é todo um programa de intenções, Clara Batalha é, nestas obras, o referente de fusão das ciências humanas com as naturais que serve como ponto de partida para uma pesquisa livre sobre a linguagem e os seus fundamentos assentes na relação do corpo com as coisas e os seus sons. Um pouco à maneira da poesia concreta, e deixando transparecer, entre outras, a herança recebida de outra artista portuguesa dedicada à linguagem, Ana Hatherly (1929-2015), a quem Isabel Carvalho foi buscar o título do seu projecto editorial Leonorana, iniciado em 2016, a transformação dos signos literários em signos gráficos evidencia a performatividade mimética e sinestésica da linguagem.

O gosto da artista pelas analogias, os jogos de palavras, os anagramas e a predisposição para entender e explorar a multiplicidade significativa e significante da linguagem está também patente na sua última série de trabalhos, “Ar(a)c(hné-en-ciel”, de que Interjeições faz parte. Neste caso, o estudo das condições fisiológicas, cognitivas e sociais da linguagem e, em particular, da fala e da audição, servem de pretexto para, recorrendo à aranha (a partir da tecedeira da mitologia clássica Arachne) e ao arco-íris (arc-en-ciel), pensar a tessitura da textualidade e a sua capacidade para simultaneamente constranger e libertar o corpo e as suas múltiplas representações.