MARTÍNEZ, Chus — “Flowers Made Us Possible”, in Relevos/Reliefs, Kunstlerhaus Bethanien & Fundação Calouste Gulbenkian, Berlin / Lisboa, 2014, pp. 25-28. Trad. Marinela Freitas.


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As Flores Tornaram-nos Possíveis

I
Gosto de ler sobre flores. As flores fazem-me lembrar uma frase de uma crítica literária que admiro particularmente, Elaine Scarry: “A beleza tem sempre lugar no particular, e, se não houver particulares, as possibilidades de a percepcionar são escassas”. (1) As flores correspondem a este tipo de particulares. Partimos do princípio de que sabemos como elas são e podemos até considerá-las kitsch enquanto ideia; no entanto, sempre que encontramos um campo de flores ficamos surpreendidos. Elas são simultaneamente delicadas e poderosas. O seu aparecimento marcou o fim da era réptil e foram as flores que nos tornaram possíveis, ao tornar possível a fruta, as proteínas e o açúcar. Olhando para elas desta forma, não é contraditório pensar em gordura e flores ao mesmo tempo. Há algo de muito poderoso nelas, a pura corporização da bioquímica, de todas as relações entre sol, água, solo, açúcar, odor, proteína, forma, cor, transformação, repetição... Mas elas são também o indicador de uma grande incerteza: como é que os factos se transformam em emoções? Por que é que nos comovem e por que é que não só nos afectam através dos sentidos, como também produzem sentimentos, ideias, intoxicando-nos com a incoerência da vida?

II
As flores são estranhas criaturas intermediárias. Podem ser entendidas como um indicador, uma ferramenta para registar as operações plausíveis que a arte faz a partir do interior do conhecimento: matéria, linguagem, imagens, forma... tudo surgindo a partir do interior. E é talvez esta a razão pela qual elas têm tanta história dentro da história da criação artística. As flores, por outras palavras, representam um modo diferente de nomear o desafio que a arte coloca ao problema da coerência, à capacidade de dar resposta, à demonstração. O seu movimento oscilante corporiza uma contínua especulação performativa sobre modos de afectar e ser afectado, sobre modos de nomear. Diante das flores, o observador é obrigado a encontrar uma linguagem, a imaginar um espaço, a conceber um tempo, e a ultrapassar a identificação com todos eles e, ao mesmo tempo, a produzir um longínquo a partir de tudo isto.

A vacilação das flores tem a virtude de percepcionar o desconhecido sem que este seja transformado em comunicação pela sociabilidade superficial do discurso. Refractar o desconhecido sem sintaxes, sem o movimento de deslocar o conhecido e substituí-lo por um novo conhecido, ou por um outro conhecido: este esquecimento momentâneo das sintaxes implica um esquecimento momentâneo da aprendizagem — isto é, poder dar ao desconhecido uma forma, uma formulação, que permitirá que o inconcebível seja concebido. Portanto, as flores dão nome à possibilidade de descobrir pontos insuspeitados entre o animado e o inanimado, tal como entre as várias formas de vida; uma imaginação capaz de conceber um acto de conhecimento junto daqueles que vivem para lá da linguagem.

III
Em Notas de Literatura (1958), Theodor Adorno afirma que o ensaio é a forma de escrever que melhor se adequa ao pensamento, dado que um dos seus atributos é se “sem fundo”, não ser limitado à transmissão histórica ou à etimologia. “Sem fundo” é aqui antónimo de “imóvel”. O trabalho de Isabel Carvalho tem sido sempre motivado pela exploração do que o movimento pode ser, quando o movimento não pode sequer ser ainda percepcionado. Ela tem uma ideia peculiar e muito particular do subtil: ao fazer livros, ou esculturas, a sua preocupação principal parece ser a de descobrir a dimensão de vida nos seus materiais, dimensão essa que ninguém antes viu ou percebeu. As suas obras são parte de um movimento invisível, de uma investigação. É difícil descrever ou subscrever a sua prática a um “modo” particular do contemporâneo, tal como o entendemos hoje. O seu trabalho não tem maneirismos nem é pós-disciplinar, para usar termos académicos. Recorrendo às palavras de Ralph Waldo Emerson, poderíamos dizer que, no modo como ela lida com a matéria e a forma, a textura e o texto, os sentidos e o sentido, etc..., ela procura alcançar a sabedoria primordial, sendo que a sabedoria primordial é a intuição, “enquanto que todos os ensinamentos posteriores são instruções”.

As suas obras exigem e merecem tempo. Elas têm a qualidade de surgirem diante de nós como prolegómenos, ou seja, relembram a possibilidade de um tempo que é sempre preliminar, de uma linguagem que se mantém parcialmente desconhecida, fora do espaço de mediação. É aí que teremos de procurar uma política. Não no sentido ideológico das preocupações de género clássicas, ou das formas modernas ou pós modernas, nem no envolvimento do observador em qualquer tipo de acção. Mas “política” no sentido da modificação premeditada do tom que ela usa nos seus temas, um reverso intencional do “bom” entendimento do tempo. A preliminaridade que ela inscreve em todas as suas obras é pura resistência. Assim, as suas obras poderiam funcionar como as virtudes clássicas: uma manifestação de um acto de desapropriação— do conhecimento, da propriedade, etc... Desapropriar é completamente diferente de recusar. O acto de desapropriar é radicalmente diferente do elogio populista da ignorância. Desapropriar significa, enquanto artista, colocar no centro a possibilidade de fazer algo com um material e uma forma, com uma linguagem, com um sentimento até, ao mesmo tempo que o “ainda possível” está sempre presente. E é ao activar o possível que a arte e as obras de arte são imaginadas, não como um produto, mas como um evento ou, melhor ainda, no contexto do trabalho de Isabel Carvalho, como um advento, uma forma evidente de ideias que não encontram um significado estável, mas que têm significância.

1. Elaine Scarry, On Beauty and Being Just. Princeton University Press, 1999.