CARVALHO, Isabel — “Prefácio”, in Relevos/Reliefs, Kunstlerhaus Bethanien & Fundação Calouste Gulbenkian, Berlin / Lisboa, 2014, pp. 5-10.


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Esta publicação surge um ano depois da exposição que realizei durante o período de residência artística na Kunstlerhaus Bethanien (Berlim). Na altura tinha já lançado uma publicação que acompanhava a exposição —“plateaus singers merge languages together/os cantores dos planaltos fundem linguagens”. Em conjunto, as duas publicações dão continuidade a um mesmo tema — o espaço. Seguem, contudo, direcções muito distintas, porque aprofundam o tema ao ponto de este quase se perder na complexidade de relações estabelecidas com outros subtemas. Tal acontece (naturalmente) pelo tempo decorrido, mas também pela minha necessidade de tornar cada oportunidade de trabalho (neste caso, esta publicação) numa (nova) reflexão e de integrar, tanto quanto possível, as circunstâncias do seu processo de realização.

De certo modo, o que agora se apresenta é uma se-gunda mostra de trabalho, em que o espaço da exposição e o espaço da apresentação (e documentação) desse trabalho se tornam o mesmo. Embora o cruzamento dos dois espaços não seja aqui explorado, esta questão é relevante na medida em que, ao longo do meu percurso, o espaço do livro se tornou com frequência o destino primeiro do trabalho que realizei. Por outras palavras, em muitos casos, o livro não é apenas aquilo que sucede ao espaço da exposição e que lhe garante o seu prolongamento no tempo, mas o primeiro e último espaço de apresentação desse mesmo trabalho.

Tendo em conta a infindável reflexão sobre o espaço já existente, esta temática será agora abordada através do cruzamento do “espaço psicológico/mental”, do “espaço físico” e do “espaço de representação” (arte). O subtema predominante que daí decorre é o das “propriedades”. A relação entre os espaços mencionados é essencialmente metafórica, tal como o é a sua relação com as “propriedades” e a relação das “propriedades” entre si.

No período de tempo da residência — entre Dezembro de 2012 e Novembro de 2013—viajei entre Berlim (Alemanha), Porto e Lisboa (Portugal), Agadir (Marrocos) e Rügen (Alemanha).

Cada oportunidade de mobilidade (mudança temporária ou permanente de espaço) teve e tem para mim a importância de um propósito de estudo. Como se a viagem (o acto de viajar) e a permanência noutro espaço fosse, e se tivesse tornado a certa altura, o móbil central do trabalho. De certo modo, o que me chamou a atenção para a mobilidade como (fundamentalmente) necessária foi o afastamento relativamente a um primeiro espaço—o espaço familiar. Este primeiro espaço pode ser compreendido também como sendo o espaço natural (ou de origem). Este pressupõe, à partida, um reconhecimento de tal ordem garantido que inibe o esforço adaptativo e, por isso mesmo, de comunicação. O afastamento (fruto da distância percorrida) permite expandir a percepção e reconhecer diferenças/diversidades. O mesmo acontece com o retorno a esse espaço familiar/de origem, pelas mútuas alterações que se verificam: no espaço que se deixa (e que mais tarde se encontra) e em quem se desloca-viaja-mobiliza.

A viagem a Agadir — na costa marroquina, e daí até às proximidades do deserto — resultou de um impulso para um plano horizontal, para a planura, do que não tem propriedades. Como se esse impulso tivesse origem num “espaço psicológico/mental” que procura (e é atraído por) esse “espaço físico”. Algo que aconteceu em paralelo à crescente abstracção que o meu trabalho tinha vindo a adquirir. Ou seja, a viagem ocasionou o encontro (na verdade, o confronto) entre os espaços referidos (“psicológico/mental” e “espaço físico”) e o terceiro espaço: o da “representação”, arte.

Foi o facto de, mais tarde, tomar consciência desta atracção recíproca (a quase coincidência dos espaços) que me levou a supor que, no limite extremo, o que estava em questão era a ausência de propriedades. Evidentemente, não se trata de uma ausência tout court, mas de uma certa resistência em entender, percepcionar e tornar conscientes as propriedades em geral. Realmente só é possível enten- der este limite, o encontro dos três espaços, em abstracto, porque só em abstracto é possível não se considerar as propriedades (por não se ter consciência delas). É algo meramente abstracto — e, contudo, a abstracção é em si mesma uma propriedade. Portanto, o limite a que me refiro (e que é apenas percepcionado ao nível das ideias, da pura abstracção) tornou-se relevante (como ponto de chegada) para o que se seguiu: a partir daí, as propriedades começaram a ganhar força e a surgirem como tópico, provavelmente porque a minha resistência em as percepcionar de forma consciente deixou de ser tão forte.

No decurso desta viagem, e no decurso de outras viagens que fiz durante o período de residência, comecei a dar progressiva atenção aos materiais, porque eles são aquilo que se pode transportar como reservatórios de memória. E, contudo, por vezes não se transporta senão a memória dos mesmos e das suas propriedades. Foi o simples acto de prestar atenção aos materiais (ao particular e ao objectual) que me fez prestar atenção também a mim mesma, como viajante (à minha fisicalidade e ao meu espaço interior), e ao contexto que me cercou (ao espaço exterior).

Pressupus, então, que a estranheza do acto de viajar (da mobilidade), de criar distâncias, de reconhecer diferenças/diversidades e de estimular a comunicação, potencia o reconhecimento das propriedades. A viagem foi sempre considerada a par da narrativa — e mesmo como condição da narrativa. E, genericamente, o que nesta publicação se apresenta é a (experiência da) narrativa de um conjunto de eventos que manifestam certas propriedades, tornadas conscientes num determinado período de tempo e em espaços designados. Trata-se, pois, de uma nova etapa, entre a abstracção—ausência de consciência das propriedades —e a figuração—consciência das propriedades.

Ao considerar-se um limite como abstracto, o mesmo (creio que) se aplica ao outro extremo/limite — a omnisciência das propriedades. Porque não é senão possível a consciência de uma quantidade relativa de propriedades, não pretendo aqui explorar mais propriedades do que as necessárias. No caso das necessárias, não pretendi listá-las ou fazer uso de um sistema predeterminado de agrupamento para lhes dar ordem — se um sistema eventualmente aparece, é devido apenas à intuição. Como também não está em causa a defesa de uma estética subjacente ao exposto que suprimiria a abstracção pela figuração. A estética seguida decorre do mútuo condicionamento de circunstâncias diversas — não só do meu desenvolvimento pessoal e artístico, mas também do(s) contexto(s) em que me insiro. Trata-se, simplesmente, de deixar que uma estética tome forma — uma estética que faça com que as propriedades entrem em relação e surjam da necessidade da narrativa.

Assim, nesta publicação, a componente textual entrelaça-se com a componente visual, num esforço conjunto para construir uma narrativa. Na sua complementaridade e fricção, estas componentes fazem sobressair certas propriedades, ou seja, é por entrarem em relação que estas propriedades surgem e não outras. São propriedades relacioná- veis, que transformam a narrativa numa teia de relações.

A componente textual é constituída por diálogos ficcionados, fruto de momentos partilhados com artistas da comunidade que se formou durante a residência em Bethanien; um texto/parábola intitulado “Mineiros de Superfície”, decorrente da experiência de regresso à cidade do Porto e da observação (com espanto) dos movimentos entre as casas de penhora, as ourivesarias e as sucatas; um texto/parábola intitulado “Riso”, que resulta (de certo modo, como o anterior) de um exercício de interrupção do fluxo mental habitual, para resolver um problema cuja solução está longe de ser clara e única (e daí o texto se apresentar como aberto e ter um pendor meditativo); e, um ensaio de Chus Martínez, que amavelmente aceitou o convite para escrever sobre o meu trabalho.

Quanto à componente visual, esta consiste, por um lado, num conjunto de relevos, feitos com gesso e com (resíduos de) espuma recolhida nas geografias costeiras de Rügen, Agadir, Essaouira e Porto; e, por outro, num conjunto de peças trazidas incompletas do estúdio-atelier em Bethanien e terminadas no Porto, também feitas de materiais heterogéneos recolhidos e transportados entre espaços e posteriormente transformados.

Nos relevos, é possível reconhecer articulações do corpo humano. São representações de força, da mesma força motora necessária à viagem (e à mobilidade em geral) e requerida também para o trabalho. Através delas, questiona-se o trabalho em geral e o trabalho artístico em particular. Estes relevos inserem-se na narrativa, e são dela imagem, na medida em que de ambos se espera extrair apenas o relevante — uma figuração mínima, discreta.

As peças são esculturas de flores. As flores resultam do uso que quis fazer de óleos (sobretudo de óleo de argão, combinado com outros óleos com propriedades distintas, nomeadamente com cheiros intensos) que trazem consigo uma memória antiga do seu uso protector. Quis fazer sobressair esta matéria gordurosa como camada protectora relativa, que tanto protege como atrai. Contudo, os óleos não se vêem. Estão integrados com outros materiaisque os contêm. O círculo é o que sintetiza a figura das flores — a convergência para um centro de uma experiência externa e para a sua assimilação interna. Por coincidência, são quatro esculturas que sintetizam a experiência em quatro destinos distintos: Berlim, Essaouira/Agadir, Rügen e Porto.

Retomando os três espaços antes mencionados, poderemos dizer que o impulso representado por esta publicação faz coincidir (e convergir) de novo os espaços: o “espaço psicológico/mental”, o “espaço físico” e o “espaço de representação” (arte). A planura adquire então ondulações, nuances, irregularidades e subtis alturas nos relevos, tal como adquire um centro nas flores.

Resta dizer que este ensaio não pretende ser explicativo mas somente introdutório. E, por isso, espero que seja ele mesmo um relevo (com uma figuração mínima, discreta) que, a par dos outros elementos desta publicação, se apresente como uma proposta e um convite a que nele (e através dele) se descubram e se reconheçam relações de propriedades.