CARVALHO, Isabel — “Configurações Possíveis”, in Femme qui passe, Artes, projecto de Arte Contemporânea, Fundação Manuel António da Mota, Porto, 2014, pp. 50-55. 


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Esta nota complementar, que acompanha a peça/instalação de luzes (numa estrutura de metais, lâmpadas LED, cabos, etc.) e som (leitura da peça aqui transcrita), surge do impulso de deixar fluir o projecto até atingir um limite (um prazo) e do desejo de o circunscrever, ficando, contudo, em aberto.
Com esta nota pretendo ainda salientar dois aspectos contextuais: o efeito disruptivo do sonho e do acto/da experiência de sonhar e o sentido de responsabilidade.

Afinal o que é um sonho ou por que é que sonhar (algo que acontece com frequência) pode ser objecto de interesse? Na linguagem comum, sonho e sonambulismo são termos que utilizamos para nos referirmos à experiência de estar “fora do mundo” — um estado de devaneio, de presença fora da acção. Há já algum tempo, porém, que pressinto que há um outro entendimento possível para os sonhos, que eles têm um efeito disruptivo na sua manifestação, no seu estado puro de aparição. Nessa procura intuitiva de um outro modo de entender os sonhos, o encontro (mais ou menos casual) do texto de Henri Bergson, Sonhos, revelou-me a semelhança entre o estar/ estado acordado e o estar/estado a dormir (ou mesmo a existência de níveis que vão de um estado ao outro). Uma semelhança que se verifica sobretudo ao nível da percepção e do entendimento.

Os mecanismos perceptivos que entram em jogo na recolha de informação (o que se recebe, o que se sente) são os mesmos, tal como é também a nossa memória que é accionada. Toda essa informação é gerida e recombinada, de modo a que lhe seja dado sentido. Dar sentido não é mais do que configurar ou criar formaçõe a partir do material percepcionado ainda “em bruto”. E esse momento de dar sentido está, à partida, ligado a um modo de ser, a hábitos enraizados, a um tecido social, a uma cultura, podendo, por isso, fechar-se sobre si mesmo.

Se conferir sentido poderá ser útil quando falamos do estar/estado acordado, no caso do estar/estado a dormir, a vantagem é a do relaxamento proporcionado pelo julgamento e a da capacidade que temos de não configurar/formar de modo previsível, quase automático, como acontece na decisão/ acção imediata requerida no dia-a-dia. Por isso mesmo, somos capazes de formar/reconfigurar de modo diferente depois de percepcionarmos o material em bruto como se estivéssemos num outro registo (extremamente complexo), onde podemos simplesmente observar a percepção tal como ela acontece. Ora, isso requer exercício, uma disciplina, que a certa altura poderá tornar-se mais do que uma curiosidade, uma utilidade, de uma outra ordem (que não a do dia-a-dia).

A hipótese de partida é, portanto, a seguinte: e se os sonhos, na sua manifestação, pudessem ser capturados, nesse estado prévio à formação/configuração e à conotação que lhes damos? Ou seja, e se por uns momentos, pudéssemos interromper essa nossa necessidade de lhes dar sentidos, ou mesmo de os interpretar e de os traduzir?

Ainda que isto corresponda à parte criativa do sonho e de sonhar, proponho o seguinte: e se nos detivéssemos por uns instantes na informação primeira —  quase pura, sensorial —, parando simplesmente no que sentimos e no que recebemos? E se deixássemos os sonhos livres e aceitássemos que são o que são? Que é o mesmo que propor: e se não construíssemos logo uma narrativa, se a adiássemos um pouco? Sem o prazer ou o desprazer de ter um sonho ou um pesadelo, uma experiência boa ou má, mas considerando apenas a experiência pelo que ela é?  

Paralisar e experienciar esse momento seria como parar os hábitos com os quais vivemos. Um quase-estado meditativo que se revolta contra preconceitos/ideias pré-concebidas. E será possível ficar aí nesse momento paralisado? Talvez não por muito tempo, mas seria o tempo suficiente para repensar uma teia de possibilidade narrativas que se estendem a partir da experiência pura de um sonho. O que é praticamente o mesmo que impedir que tudo o que percepcionamos se transforme ou se converta em algo de reconhecível ou que seja analisado a essa luz. E é aqui que encontro uma forte ligação com a responsabilidade.

Pois não temos nós a responsabilidade de nos envolvermos e repensarmos o momento (presente)? Se ainda há pouco associava o estado de sonho ao sonambulismo, ao estado “fora do mundo”, não será esta prática (que aqui proponho) um investimento, enquanto acção premeditada, precisamente o seu oposto? Ou seja, não será uma forma de acção?

Este projecto a que me dediquei no último ano começou a partir de uma figura de incontestável relevância histórica, hoje parte integrante da nossa memória cultural portuguesa, portuense, uma pintora da transição do século XIX para o
XX — Aurélia de Souza. Por vontade dessa pintora, a memória foi algo que sempre se turvou no seu trabalho. Como se ela quisesse mostrar o seu trabalho como: “é isto!”. Por essa razão, a pintora não só deixou de datar as suas pinturas, como planeou ainda o desaparecimento de muita da documentação que permitiria traçar uma historiografia mais exacta do como, do quando, do onde, do porquê, etc. da sua vida e obra. De certo modo inviabilizou a produção da sua bio-grafia. E isso é o que me parece ser fundamental quando a ela me refiro.

Tomando agora a responsabilidade de expor, de tomar “isto como isto”. Não se trata, exatamente, de ir contra (ou mesmo de invalidar) o que considero ser alguns excessos interpretativos e enquadradores de Aurélia de Souza,
se pensarmos no que sobre ela foi já escrito, pensado, reflectido. Mas antes de interromper e de exercer uma força deliberada que mostre “isso”, sem procurar encerrar o que “isto é” numa configuração claramente definida,  mas abrir a configurações possíveis.

Durante a preparação deste projecto, experimentei um sonho com luzes verdes. Os sonhos foram (e são) para mim um motivo de interesse e, até esse momento, sempre os interpretei livremente. Depois deste sonho, porém, pensei que não tinha encontrado uma explicação que a ele se adequasse. Muito possivelmente tratou-se de não o querer (ou necessitar de) interpretar, mas somente de viver essa experiência por si mesma. E, para isso, para fruir (de facto) a observação dessa manifestação pura do sonho, a explicação de Bergson (da sua semelhança com o estado/estar acordado no momento da percepção) pareceu-me fazer sentido. É isso que a instalação representa. Não existe nenhuma narrativa. É uma configuração, uma forma, sim, mas meramente abstracta. Proponho que seja percepcionada como tal – uma configuração de luzes ou de impressões luminosas.

Através desta instalação, concebida a partir da vivência ou da experimentação da manifestação pura de um sonho, trazida para a experiência real, estabeleço um paralelo com a obra de Aurélia de Souza, convidando a que esta seja percepcionada por si mesma. Nem que o seja apenas por um instante.

Já na base da peça sonora, está um diálogo ou a construção de uma narrativa que cruza diferentes tempos (o da pintora de referência e o meu), mas num mesmo espaço — a mesma cidade, o Porto. Em poucas palavras, o centro é precisamente a procura da responsabilidade através da questão “porque obedecemos?” (colocada também por Bergson), a que se juntam outras duas: “ao que obedecemos” e “quando obedecemos”?

A resposta, ainda que vaga e indirecta, passa necessariamente pelo já mencionado esforço de interrompemos hábitos e interpretações preconcebi- das, com as quais vivemos sem saber bem porquê, como se fossem as únicas possíveis, e pela tomada de consciência de que, ao aceitarmos essas interpre- tações, estamos já a obedecer-lhes.

A peça ou diálogo dramatizado começa com um dos interlocutores (aquele que teve um sonho) a identificar-se com a artista (Aurélia de Sousa), sobretudo com os aspectos relacionados com o modo romântico como ela foi apresentada e historiografada (e que é próprio do contexto da autora), nomeadamente a sua entrega ao absoluto e a sua identificação com a figura de um santo — sendo que santo e artista são entendidos como um só (partilhando a mesma forma/modo de vida). Esta narrativa é logo de seguida desconstruída por um segundo interlocutor, que interrompe os lugares comuns — sem concordar ou discordar —, mostrando que tudo não passa de uma construção, e sublinhando a pertinência de se recomeçar. Recomeçar enquanto repensar, reflectir. E, por isso mesmo, ponderar sobre a que ou como obedecemos.

Aí reside o sentido da responsabilidade, que mais não é do que um corte (um rompimento), que toma como modelo o efeito disruptivo proporcionado pelo sonho e pelo acto de sonhar. Um corte que não representa uma completa ruptura, mas que deve antes ser visto como uma potência criativa. Um corte com a História — antiga e recente — e com a identificação entre artistas.

Este projecto pretende, sobretudo, ser uma homenagem, de uma artista a outra, sem qualquer propósito de forçar proximidades/ afinidades, mas sim de assumir um espaço de encontro – a obra.

O texto de Caroline Hancock que aqui se publica cumpre o papel (positivo) de mostrar (ou defender) a História, de apresentar, valorizando, a artista/pintora a um público internacional, recorrendo, para isso, os factos da historiografia de Aurélia de Souza que são, para nós, seus conterrâneos, mais conhecidos ou reconhecíveis. Esta nota complementar a este projecto (mais especificamente, ao diálogo dramatizado) segue uma outra direcção, cabendo-lhe a ela o papel (negativo) de procurar interromper certos hábitos de ver/ler a História (e, com ela, o passado). Essa interrupção instaura, pois, um recomeço criativo, dando espaço a uma nova criação — esta que se apresenta neste espaço. Foi essa a responsabilidade que chamei a mim mesma: abordar a obra de Aurélia de Souza com o propósito de a libertar e de desejavelmente a abrir ao presente. Apresentando-a como: “É isto”.
2014