O nu e a audiência

O que é que vimos? As nossas silhuetas agigantavam-se debaixo da projecção de um foco de luz de cor vermelha, intensa, enquanto os nossos olhos piscavam, adaptando-  -se à restante escuridão; não sabíamos quais eram os limites do espaço no qual nos movimentávamos, até nos fixarmos num sítio para onde nos vimos empurrados; aos poucos, a configuração de um corpo destacava-se, mas não se mostrava ainda por inteiro; fomos apanhados, sem saber de que canto das nossas mentes provinham as nossas primeiras impressões sobre aquilo que estava a acontecer; já tínhamos visto imagens semelhantes de uma nudez agitada, eram aterradoras e intimidantes; receávamos que aquele corpo singularizado pelo foco de luz, a qualquer momento, nos tocasse, mesmo que houvesse entre nós e ele uma certa distância; sentimos que dali deveria surgir um novo campo de expressão, claro, e nós estávamos dispostos a fazer parte disso; contudo, para nos protegermos, usámos de um humor nervoso, tecemos comentários e dissemos disparates infantis como quem mostra que está estruturalmente à altura do confronto; chegámos a pensar que era uma simulação de um cenário adverso, para nos provocar, simbolicamente concebível apenas para alguns de nós, porventura, os mais bem preparados; para os outros, era tudo simplesmente desnorteante; ainda assim, ficamos todos de pé, mantivemo-nos verticais, rígidos; até que nos caiu um conjunto de sentimentos que nos tornou agitados e que se manifestou numa certa aspereza da pele, alastrando-se a todo o nosso corpo.

Sob a luz vermelha, identificámos que um corpo por inteiro se impunha diante de nós; estava coberto de prata como se fosse um autómato, mas movimentava-se claramente de modo orgânico; o aparato chamou-nos a atenção, em primeiro lugar, como visualmente sedutor pelos brilhos e reflexos de luz; aos poucos pareceu-nos evidente a dimensão ritualística, iniciática; logo, insistimos em desqualificar a intenção de nos animarmos por uma experiência de descoberta comum de mútuo reconhecimento, e foi mais fácil chamá-la de impostura a desmascarar; vimo-nos perante actos de uma espécie de dominação primordial, ousados, talvez numa tentativa de nos convocar a agir; mas, só pensamos em ignorá-los; confessemos que naquele momento éramos blocos de cimento, abrigos das nossas inseguranças e não pontes humildes a tentar perceber o que se estava a passar; éramos torres sólidas, e não células, para nos desfazermos das nossas certezas; éramos territórios definitivos e não estávamos dispostos a ceder nem um milímetro; resistíamos, desvalorizando até onde nos podia levar; declaração de descontentamento político, certamente, mas estávamos demasiado ansiosos para perseguir aquela figura corpórea, consideramos desactivar a sua influência em nós e, por isso, rodeámo-la de lugares comuns; estava nua, aparentemente vulnerável e, contudo, ostentava uma presença superior à nossa; vimo-nos então como os desordeiros que estão habituados a estar no fim da linha das oportunidades e, por isso, a não lhe oferecer nenhuma;

Erámos então seres impenetráveis e não nos entregámos logo; achamos que ali tínhamos esse direito de só observar como quem vigia; a frase (qualquer uma), mesmo que não tenha sido proferida, foi um murro a frio, e não corremos atrás do seu significado; mesmo que nos tenha despertado a curiosidade, esta desapareceu assim que recuperámos os nossos costumes que nos pressionaram a voltar ao que nos era familiar; é verdade, o corpo brilhava, iluminando-nos, mas a sua nudez provocava-nos convulsões incendiárias, pois não suportávamos ver tanta carne exposta, ainda que jovem, bem definida, firme, porventura, de uma beleza apaziguadora; a nossa fragilidade traduziu-se, então, em só nos concentrarmos na razão, como se nos segurássemos com as pontas dos dedos sobre um vidro prestes a explodir;

Dissemos que não era bonito, não podia ser, aceitar as transgressões de um corpo electrificado apto a existir, a ocupar espaços, a movimentar símbolos, em fúria, reclamando reacções públicas ao mesmo tempo que se movia de forma inconsistente, confrontando as nossa cómodas narrativas, como meros observadores, assim como os nossos mundos e os nossos pressupostos; estávamos comprimidos como um punho a pressionar o ar; de facto, dificilmente se podia dizer que se tratava de um acto belo; suspeitámos que estava ali em jogo a nossa fantasia de tocar um corpo quente, mas que, contra todas as evidências, repelíamos; talvez um dia, todos os desejos que possuímos possam encontrar objectos que os saciem, objectos disponíveis para nós os consumirmos, mas não era disso que se tratava ali; havia um desencontro; acostumados a sublimar o que instintivamente queremos para que não sejamos facilmente impelidos à deriva, resistimos; temíamos que se perseguíssemos uma cadeia de desejos, esta não deixasse de se multiplicar, cada vez mais, em outras configurações desejáveis que nos prenderiam a um ciclo sem fim; todos nós queríamos falar, talvez de coisas tontas, só porque os deslizes do que as nossas línguas transportam para os lábios podiam criar canais de ideias mais bem organizados, mas que também levariam facilmente ao fundo a nossa reputação de pessoas preparadas para o que vinham; ali sentimos que convergíamos para um caos;

Na verdade, assumimos que os seios vivos, trémulos pelo efeito dos braços esticados e do tórax projectado como se tivesse uma mola, os joelhos juntos a esmagar pequenos pedaços de terra no chão, as nádegas afastadas como asas, e as mínimas torções provocadas pelas dobras de um corpo elástico, entre pontuais objectos de uso vulgar, doméstico, existiam ali só para nós; nós que erámos agora um centro provocado pelo centro do corpo prateado, de reflexos vermelhos, que se agitava à nossa frente; fomos capturados na nossa própria armadilha mental, habituados a não existir verdadeiramente enquanto corpo; e não havia como nos convencer que afinal podíamos chegar a uma melhor compreensão de que um corpo pode; como acontece nas lutas de rua que testemunhámos sem nos implicarmos, não podíamos virar a cara, desviar o olhar, mas também, como acontece nessas circunstâncias, não nos permitimos sentir o frémito de sair das nossas cavernas; estávamos apáticos, em vez de estar em êxtase; aquele corpo, era parecido com o nosso, mas jamais podia ser o nosso, e por isso supusemos que aquela era apenas uma imagem externa em movimentos, que verificámos terem sido meticulosamente estudados, sem gestos supérfluos, e que nos embaraçava, nos diminuía, e sucessivamente nos obrigava a reconhecer a sua existência;

O corpo exposto adquiria uma dimensão universal que resistimos em celebrar; quando levantou a cabeça, apontando-a para o tecto, a respiração pesada, em esforço, fez com que se esbatessem algumas das margens e limites que o definia, apartando-o de nós, os observadores; a temperatura exalada nivelava a do espaço; ainda assim, como por um acto de vontade e de amor próprio, fixamo-nos no desafio que nos impunha o lugar de centro, manipulável; erámos soberanos dos nossos limites e não qualificámos de coragem aquela exposição nem o que a mesma podia vir a trazer-nos de importante; preferimos negociar se havia ali beleza, beleza adequada à ideia de beleza, convertendo qualquer oportunidade de compreensão da intimidade instaurada entre os presentes em mútua agressão; o que, por sua vez, nos fez agredirmo-nos, via comparações mortificantes; foi a forma que encontrámos de nos situarmos longe do que, através do calor, nos apelava a ver a experiência concreta e física de um corpo vibrante a oferecer--se, querendo mesmo que este desaparecesse sem deixar marca permanente; um de nós ainda murmurou “... um animal”, como se nos quisesse penetrar com a ideia de que a fina película das nossas vestimentas fosse uma artificialidade imposta, cuja origem se tinha perdido na memória dos tempos; porém, lançada à pressa, falhou em nos libertar de um pudor covarde, aparentemente irreversível.

Quem trouxe a questão da exploração, não entendeu completamente que os nossos olhos estavam até ao final demasiado excitados, turvos, pois ainda não tínhamos decidido se o olhar é uma forma de tocar e de sentir; nós esfregámos as nossas mãos inquietas, mas elas eram, neste caso, inúteis; deixámo-las, portanto, cair; elas não nos serviam para nada; ficámos a observar, indecisos, se éramos nós que ficáramos despidos; virámos o olhar uns para os outros na tentativa de ainda nos reconhecermos depois de tudo; preocupávamo-nos em saber se nos era pedido ver o mundo desmoronar-se e se havia forma de desculpar completamente os nossos fracassos de conceber como é que um corpo em acção nos podia prometer redenção e instaurar esperança de outros futuros fora dali; mas nada mudou; tínhamos aprendido que tudo o que caíra nas nossas mãos era para trabalhar, mas, de facto, o que retivemos nos nossos olhos, era trabalho de outra natureza; era uma missão; que em vez de nos dar apoio na revisão das nossas certezas, serviu para confirmar a mais antiga inimizade para com um corpo transgressivo.

Julgámos ter saído incólumes, ignorando que um corpo, como o nosso, tem outras formas de apreender o que nos foi oferecido a experimentar a partir de um outro corpo; pois habitar um corpo resulta em muito mais do que isso que se manifesta em nítidas resistências; quando só conjuga a vontade e uma frágil consciência de si, perde a capacidade de trazer para a luz do dia o verdadeiro reconhecimento das transformações sentidas, muito subtilmente, pelos nossos órgãos; esta oportunidade de superação, se assim vista, seria favorável para nos submetermos aos golpes infligidos posteriormente no nosso quotidiano, de acordo com os nossos desejos de mudança, como tal se pôde mais tarde verificar; sim, faltava que o tempo corresse o seu curso próprio para podermos averiguar que um corpo transformado num caleidoscópio de sensações, dificilmente captadas no imediato, é uma realidade viva, combativa.  

2022