MALATO, Maria Luísa — Text for the handout of the exhibition Ar(a)C(hné)-EN-CIEL


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Olha para a tua vida como se ela fosse uma teia.

Antes do mais, ela é um sítio que não podes escolher. O ângulo entre dois ramos. A distância entre o pilar e a soleira da porta que te coube. O vão de uma ruína.

Depois, um cálculo. O salto proporcionado pelo vento que atravessa os ramos da árvore. A queda que projetaste entre a força gravitacional e a resistência a essa mesma força. O vazio que preencherás com o edifício.

Há ainda o viço que de ti sai, a matéria que preenche o salto, a queda ou, em qualquer caso, o vazio.

Pois a tua vida será como a teia: um real sem ordem, um desejo sem real e um viço cuja única razão de ser é tu seres.

Há na teia uma indesmentível unidade entre o corpo da aranha e os corpos que dela nascerem, ou que por causa da teia morrerem, seja isso por acaso, vontade ou necessidade. Como na vida. Mas do mesmo modo é na teia inegável uma instabilidade caótica, que leva a aranha refazê-la de muitas outras formas, evitado o que por variadas causas foi sendo destruído na árvore, na porta ou na ruína de ambas.

Imagina-te uma aranha: faz e desfaz, mas sempre de maneira que nós diríamos paradoxal, isto porque a aranha é simultaneamente automatizada e inventiva. Na verdade, a aranha tem “génio”, a acreditarmos na definição que do conceito tem um filósofo como Diderot. O seu modo não é maquinal, mas tem da máquina uma qualidade: faz o que tem a fazer, permitindo-se mil e uma variantes de uma mesma estrutura plástica. O “génio” de cada ser não é o de ser sensível ou insensível, racional ou emotivo: o génio é, ao mesmo tempo, isto e o que não é bem isto. Ao contrário da máquina, que faz “maquinalmente”, sem olhar ao onde, quando, como e porquê, o génio, como a aranha (mas quem diz “aranha” diz o “autor”, ou o “ator”), faz automaticamente, segundo leis determinadas que implicam um grau de engenho, uma disciplina da energia. Ao definir o projeto da Enciclopédia, Diderot coloca o editor entre o estável infinito (“que mais se pode fazer senão reunir com o maior rigor possível todas as propriedades dos seres conhecidas no instante em que se escreve?”) e o finito instável (“a observação e a física experimental multiplicam infindavelmente os fenómenos e os factos, tal como a filosofia racional sem cessar os compara e combina entre si, e assim sempre se estendem ou encurtam os limites dos nossos conhecimentos, fazendo por isso variar as acepções das palavras usadas, tornando inexatas, falsas ou incompletas as definições anteriormente dadas, e exigindo a instituição de outras novas”). Consequentemente, a aranha é clássica (depurada) na expressão, mas barroca (caótica) no corpus/ corpo que visa (ditado pela fonte a montante, ou pela função a jusante). Conceitos como “beleza” ou “utilidade” não têm sentido per si. Elas estão em nós, como viço de aranha que pondera o salto, a queda ou o vazio. É belo o que é útil como tal. É útil o que é belo como tal. Ambos se medem pela sua eficácia, como a teia quase invisível que por isso apanha moscas.

Imagina agora Aracne. Há nela uma tenacidade de Penélope (mas quem diz “Penélope” diz “aranha”, ou “autor”, ou ainda “ator”). Não é por acaso que a palavra latina que origina “texto” é a mesma que dá forma a “têxtil”, “textura”, ou “tessitura”. Ou que a “tela” (port.), a “toile” (fr.) ou a “web” (ing.) se referem a uma rede/ net, ou estrutura/ internet. Simultaneamente ordenadas, calculadas, logarítmicas, e caóticas, babelescas e incontroláveis. O mito de Aracne (como a história de Penélope) remete, para uma tensão inevitável, no texto e na tela, entre a criação que é a vida e a destruição que é a morte. É tão natural ou necessária a criação como é inevitável o castigo dos deuses, infringido a todo o mortal que com os deuses se quis confundir.

Tu és Aracne. Ousa por isso saber.
2019