CARVALHO, Isabel — untitled, in Orla, self-published with the support of Fundação Calouste Gulbenkian, 2012, pp. 137-142.


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Álvaro de Campos escreveu um dia que “...(a Decoração vai desde a arte de arrumar bem as coisas em cima de uma mesa até à pintura e à escultura. Fernando Pessoa teve razão numa coisa: a pintura e a escultura são essencialmente artes de decorar, mas errou em limitar a essas as artes decorativas).”

Oscar Wilde, em A Alma do Homem sob o Socialismo (1891), já antes havia afirmado que “o futuro é o que os artistas são” e, diante da pergunta “qual forma de governo convém mais a um artista?”, respondera: “a forma de governo que mais lhe convém é nenhum governo. É ridícula a autoridade sobre o artista e a sua arte.” Ainda no mesmo texto, sobre as artes decorativas, Wilde assegurara que haviam sido os artífices que, ao encontrarem prazer na produção do belo, haviam civilizado o gosto da sociedade. Oscar Wilde não cria, portanto, uma separação clara entre artífice e artista, mas entre produtos mais ou menos bem conseguidos, enquanto reflexo da emancipação individual de qualquer autoridade. Do mesmo modo que, de resto, Álvaro de Campos reúne as artes pela presença de uma atitude organizativa – “a arte de arrumar bem as coisas” – e por nenhum outro critério. Estas duas perspectivas sobre as artes parecem-me complementares e constituintes de uma utopia, utopia essa que se confronta com a de William Morris. Este autor, mantendo binómios já pouco em voga na época, limita a sua defesa às “artes menores”, o que, a concretizar-se, traduzir-se-ia numa realidade cultural verdadeiramente asfixiante. Especificamente neste caso, o das “artes menores”, os argumentos por ele usados para o seu enaltecimento derivam da censura das artes elevadas como “maçadoras” e como pertencentes a uma classe específica, com tempo e dinheiro. As “artes menores” seriam as artes da emancipação operária, fazendo de cada indivíduo um tipo de artesão, cioso da produção dos seus bens, mas sem tempo para sobre eles reflectir. De facto, as artes reconhecidas como espiritualmente mais elevadas pertencem a uma classe que dispõe de tempo. Mas não se deve lutar por esse tempo. Pelo luxo – de ter tempo? Como Aldolf Loos afirma em Ornamento e Crime (1908), o ornamento (tal como ele o entende, à semelhança de Morris) seria uma despesa de tempo e de energia por parte do trabalhador, que se poderia entregar a actividades mais importantes para si. Através do elogio das “artes menores”, Morris privilegia uma ordem dominante e autoritária, ancorada no passado, não deixando abertura para o desenvolvimento individual e para o encontro de outras propostas artísticas, de outras possibilidades de ser.

Acreditando que sempre se procura a perfeição ou o aperfeiçoamento da obra como produto de trabalho, todas as artes são no seu todo (enquanto forma e conteúdo) espelho dessa perfeição e das condições de trabalho ideais. A decoração é uma atitude de procura de uma ordem preferencial. É, portanto, aplicável à ordem existencial individual, não deixando, contudo, de ser benéfica socialmente. Oscar Wilde defende que as condições económicas, políticas e sociais (que favorecem o Individualismo, como escreve em A Alma do Homem sob o Socialismo) permitem que cada um opte pela ordem mais adequada à sua expressão. Rosa de Luxemburgo, em A Socialização da Sociedade (1918), fala da responsabilidade individual e solidária na luta contra qualquer forma de autoridade e a urgência da redefinição de lugares. A decoração surge, então, como exercício de auto-disciplina na desconstrução/construção, desordenação/ordenação individual, arte de batalha frente a toda a autoridade. Não como assunto da esfera privada (ou circunscrito a esta), mas como manifestação pública.

Certos traços do camp, tal como ele é definido por Susan Sontag, em “Notes on Camp” (Against Interpretation, 1966) (ou, antes mesmo, por Charles Baudelaire, em O Pintor da Vida Moderna, 1863), sugerem a decoração como arte teatral, como estratégia suficientemente forte para assumir uma individualidade pública. Necessária na tomada de um lugar discursivo: afectando e sendo afectado (pelos outros). A decoração é, então, uma prática consciente, do desenvolvimento da expressão do ser – cultura de si e de produção de cultura visível. Veja-se como Vanessa Bell e o grupo de Bloomsbury repensaram o interior da casa, questionando a estrutura familiar e os padrões impostos. E como Charles Baudelaire, em “O Convite à Viagem”, publicado no volume póstumo O Spleen de Paris (1869), revela o país dos seus desejos, “onde tudo é belo, rico, tranquilo, honesto; onde o luxo tem prazer em rever-se na ordem; onde a vida é gorda e agradável de respirar (...)”; “Os tesouros do mundo afluem ali, como à casa de um homem laborioso e que foi digno do mundo inteiro. País singular, superior aos outros, como a Arte à natureza, onde esta é reformada pelo sonho, onde é corrigida, embelezada, refundida.”

A decoração, sim, como diz Álvaro Campos, pode muito bem ser arrumar as coisas em cima da mesa, mas é preciso ser-se livre e ter tempo para o fazer.
Esta publicação faz parte da exposição de um conjunto de peças produzidas nas indústrias vidreiras da cidade da Marinha Grande*. No tempo de permanência nesta cidade, no decurso da investigação e desenvolvimento do trabalho, foi renovado o meu interesse na decoração e no papel que esta pode ter na actualidade como arte com forte potencial político. Entendo-a como arte da responsabilidade pessoal e cívica na construção de uma realidade nova. Na actualidade pós-industrial, não se encontram já razões que façam prevalecer oposições entre as artes: não nos surpreende mais o que se passa numa galeria do que o que se passa na rua. Sophia de Melo Breyner escreveu em “Poesia e Revolução”, publicado em O Nome das Coisas: “E caminhar para a frente é emergir da divisão. É rejeitar a cultura que divide, que nos separa de nós próprios, dos outros, da vida.” E a decoração (como até aqui exposto) ganha um impulso renovado, não tanto enquanto oportunidade de shock, mas de fractura de ordens e de propostas de reordenamento, ainda que subtis, a seu tempo eficazes, na renovação cultural.

Na concepção desta publicação, dialogamos (os designers e eu) em torno dos conceitos desenvolvidos no texto sobre Musil e em torno de objectos – os copos de vidro de cores intensas e de superfícies texturadas dos Depósitos das fábricas da Marinha Grande. Desde o século XVIII, e até recentemente, a Marinha Grande foi um centro de produção industrial de objectos decorativos em vidro. Em consequência da forte industrialização, tiveram lugar nessa cidade os mais intensos movimentos sindicais no contexto português, servindo de exemplo a outras cidades do país. As grandes fábricas foram encerradas e o passado industrial mantém-se vivo através das ruínas dos edifícios, que ocupam uma vasta área da cidade. E ainda hoje as mulheres circulam de bicicleta, dando a impressão que se dirigem, movidas pelo hábito de cumprirem as obrigações fabris, para estas ruínas... Desde o início da industrialização que a população é maioritariamente feminina. Chegaram mulheres de todo o país através de informações de recrutamento passadas entre familiares. Soube que as bicicletas eram vendidas por um fabricante das proximidades. Hoje em dia, uma das lojas mais activas comercialmente no centro da cidade é um garageiro que repara e vende bicicletas em segunda mão. É provável que tivessem sido (e que ainda sejam) as mulheres as principais clientes, pelo tipo de horários atribuídos e pelo número e diversidade de tarefas, dentro e fora da fábrica, a cumprir diariamente.

Depois do encerramento das fábricas esta população ficou desorientada. Na procura de novos caminhos, muitas mulheres frequentam hoje cursos de formação para desempregados e, nos tempos livres, dinamizam estimulantes encontros entre si de troca de técnicas de artes decorativas a partir de materiais reciclados. As que participam nestas actividades contrastam com as colegas, disseram-me, que esperam pelas cinco horas da tarde para começar o dia (como se o restante tempo fosse suprimido na espera de voltar à fábrica). Os homens adaptaram-se mais facilmente à nova condição e mantiveram-se a trabalhar em oficinas alugadas por turnos, na fabricação de peças decorativas para um pequeno mercado internacional. A divisão do trabalho entre sexos não é abstracta (excepto para um olhar superficial que força a uniformidade), tendo sido outrora organizada em função da estrutura física e da biologia dos sexos. Enquanto as mulheres se ocupavam de uma parte do processo residual – de limpeza e protecção das peças em vidro –, os homens tomavam conta do processo de produção de cada peça como uma unidade. A ressonância desta divisão na actualidade justifica as diferentes formas de adaptação num tempo posterior à indústria.

A exposição com o nome Orla refere-se à localização geográfica, costeira, da Marinha Grande, mas serve aqui também, com maior abrangência do sentido, como metáfora do presente: lugar de encontro e de confronto; linha em sacudidelas constantes, dinâmica e intensa; espaço de disputa do território; recorte e configuração em permanente actualização dos limites; lugar de uma grande diversidade de alternativas promissoras. É, numa visão aproximada, uma malha texturada móvel...

A relação entre Orla e decoração, tal como acima descrita, é ser experiência de continuada readaptação e reordenação. Vejo, nas bainhas ondulantes das saias das mulheres enquanto circulam de bicicleta, o lugar de confronto íntimo na orientação rumo a uma nova forma existência.

Ricardo Reis, Edição Manuela Parreira da Silva, «Notas para um Prefácio a Alberto Caeiro – VII Contra Álvaro de Campos» [1928-30], Ricardo Reis – Prosa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, p. 215.

* Esta publicação faz parte de um projecto iniciado em 2011 com o apoio da Fundação Calouste Gulbenkian
2012