CARVALHO, Isabel — Text for the handout of the exhibition Os ovários das papoilas


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Os ovários das papoilas


1. A acção mimética está na génese das formas e sons que compõem tanto o alfabeto como o vocabulário da nossa linguagem. A linguagem verbal, tal como a usamos, foi-se alterando e adaptando ao ponto de já não espelhar esse mimetismo. E poder-se-á mesmo colocar a questão se ainda permanecem traços que nos lembrem esse mimetismo, e se é ainda possível identificar analogias entre os objectos-coisas e as palavras que os significam. Este curioso empreendimento, quando levado a cabo em especial pelos filólogos, tem como finalidade o encontro da origem fundadora da mítica língua primitiva comum, antes do processo de formação das diversas línguas.

Em outros casos, como o presente de Clara Batalha (Porto, 1929), encontra-se integrado no domínio artístico. O propósito não é o encontro da origem, mas o de fazer uso livre (porém, não totalmente arbitrário) dos seus processos de fundação para gerar uma proliferação de linguagens. No entanto, sem a intenção de instituir por completo uma linguagem (como teria acontecido inicialmente na formação das línguas) ou um tipo de estilo, mas somente [1] com o intuito de experimentar repetidas vezes o momento fundador pelos seus processos, isto é, por meio de combinações entre elementos variados e de complexas traduções entre o que é sentido (pelos receptores sensoriais na experiência do mundo dos objectos-coisas) e aquilo que é representado. É um jogo de utilização da faculdade mimética, que reivindica uma presença sinestésica [2] para que a representação tenha um número significativo de qualidades do que é representado e da forma como é feito uma vez que integra em si uma certa performance física. Contudo, o trabalho de Clara Batalha deixa-nos na dúvida se os processos fundadores da linguagem, que lhe interessam e que utiliza, vão, como é a sua função, do referente natural à representação linguística ou se ela os utiliza, numa combinatória, a partir do desdobramento da própria linguagem instituída, originando novas produções significativas. Assim sendo, se o referente real ainda importa ser representado ou se serão apenas as formas vulgarizadas da linguagem (na qual se encontram meramente resquícios do mimetismo primeiro) que a convidam a combinar-derivar.

2. As papoilas são flores silvestres muito sensíveis. Os seus tules vermelhos, que costumavam cobrir os campos, estão a desaparecer. Em França, um movimento ecológico (Nous voulons des coquelicots) alerta para este perigo. A representação da forma da papoila, com ênfase no seu centro, é utilizada no material gráfico de promoção de acções de sensibilização para a eminente catástrofe ambiental, como um símbolo agregador de uma comunidade atenta e vigilante. Os agricultores, responsáveis [3] pelo seu desaparecimento, negam o que é um facto observável e desvinculam-se da relação entre os tóxicos pulverizados nos campos e os órgãos reprodutores doentes, que levam à esterilização das papoilas.

3. Walter Benjamin em a Doutrina das semelhanças [4] chamava a atenção para o facto de a natureza se reproduzir por semelhanças e de o homem ser capaz de produzir um maior número de semelhanças, apesar de ter apenas consciência de uma sua ínfima parte. Desde o século XVIII que o estudo mais optimista da linguagem tinha como objectivo encontrar o máximo de semelhanças, logo de correspondências possíveis entre os objectos-coisas naturais e as palavras. Todos os sistemas explicativos visavam demonstrar uma concepção essencial de natureza como um complexo harmonioso. Para isso, procurou-se dissecar, de todas as formas, a linguagem nas mais ínfimas unidades e explicá-las através de fundamentos que justificassem, ao longo do tempo de formação (e deformação), cada escolha como necessária e verdadeira. Ora, este trabalho levou a empreendimentos utópicos nos quais nada podia ser deixado ao acaso – tal era o horror ao caos. O processo de Clara Batalha remete-nos para esta atitude (que impõe uma justeza do jogo formal), mas sem que nos ofereça, para já e sem qualquer pretensão disso, um sistema semelhante.

4. As notas de Clara Batalha sobre o texto de Eugène Marais, A alma da formiga branca (1937), evocam uma preocupação com a observação e interacção com a natureza exemplarmente em harmonia. O texto de Marais não é um tratado ecológico. Mas, os princípios por ele explorados, dos quais se extrai uma postura ética para com o observado (leiam-se as notas), estão em consonância com a sensibilidade ecologista mais despretensiosa. A influência deste naturalista em Clara Batalha pressente-se também na sua poesia. Como poeta, Marais constrói uma relação muito particular com a(s) linguagem(ns): a linguagem utilizada na comunicação e sociabilização entre seres humanos, bem como com as misteriosas linguagens de outras espécies animais e da possibilidade de entre elas, na sua co-existência, se intersectarem.

5. Os comentários sobre Pequena Estética de Max Bense (tal como as notas anteriormente mencionadas) foram escolhidos e transcritos dos arquivos de Clara Batalha por Isabel Carvalho (Porto, 1977), de modo a proporcionarem ao público desta exposição uma amostra dos fundamentos estéticos pelos quais tem orientado o seu trabalho. Do estudo de Bense, Clara Batalha terá destacado a importância da “estética gerativa” na integração do seu percurso individual em movimentos artísticos temporalmente localizados entre os anos 60 e 70. Todavia, foi por reconhecer na obra deste filósofo linhas vanguardistas para o tempo em que foram escritas que teceu os seus comentários como uma espécie de aforismos para seu uso pessoal.

6. Clara Batalha resulta de um trabalho de nomeação de uma identidade autoral fictícia, determinada pela idade, género e geografia, com autonomia temática e estilística. É um nome composto por duas palavras complementares (um adjectivo e um substantivo), que em si constituem um sentido conotativo de um estado presencial de elevada e tumultuosa vitalidade. A auto-referencialidade do trabalho de Clara Batalha é, por sua vez, o trabalho de deslocamento e edificação de uma vertente do trabalho de Isabel Carvalho. No limite, o centro do exposto é a confirmação da acção de nomear uma formação identitária.

7. Em 2011, Clara Batalha participou com um cartaz numa exposição intitulada Flor Infinita (Navio Vazio [5]), dando-lhe o mesmo nome. No desenho figura uma correspondência morfológica entre uma flor (genérica) e o corpo humano ou, descrito de outro modo, faz coincidir plenamente um corpo sobre outro corpo, o humano sobre o vegetal. Neste processo, a artista, que joga com semelhanças e correspondências, salienta a importância das que visam a integração do humano na natureza, num processo de harmoniosa interdependência. E é por isso mesmo que toma como inquietante o desaparecimento das papoilas (que sabe finitas) dos campos. Na praça dos Poveiros, onde se situa o Sismógrafo, um graffiti branco de pequenas dimensões, feito com stencil, que quase desaparece quando a praça está cheia, destacam-se do suporte duas espirais unidas – que significado nos ocorre, na nossa intercepção diária, face a uma imagem tão arcaica? Vemos – possivelmente – uma imagem de uma unidade ancestral, repetida, inscrita no anonimato, sem por isso se equacionar até que ponto estamos implicados. A linguagem é sempre a marca de um corpo e esta, sem margem para dúvida, provoca-nos.

[1] É certo que muitas formas acabam por ser tão insistentemente usadas que, obviamente, são reconhecidas. Mas esse não é o princípio. O reconhecimento das formas acontece pelo facto de estas se tornarem familiares.
[2] Podemos assinalar, como um traço que sobressai da sua identidade, que Clara Batalha é inteiramente e intensamente relacional e que, por isso mesmo, conserva algo de primitivo. Ela insiste num estado de sinestesia, de recepção porosa, de atenção às semelhanças entre as coisas, conservando uma sensibilidade primária que tomaríamos por desordenada, tendo em conta as exigências pragmáticas do mundo contemporâneo.
[3] Há uma certa dificuldade em apontar responsáveis uma vez que os agricultores não são os únicos; é todo um sistema descontrolado que a todos abrange.
[4] Benjamin, Walter, Linguagem Tradução Literatura. Lisboa: Assírio & Alvim, 2015.
[5] www.naviovazio.net

2018