CARVALHO, Isabel — Text for the handout of the exhibition Os ovários das papoilas 


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Notas (de Clara Batalha) sobre A alma da formiga branca* de Eugène Marais


— A observação e o registo pelo desenho dos padrões naturais – investigação plural, distante de um fim específico que não o da arte da decoração – teriam irritado o naturalista Eugène Marais que, consciente das investigações científicas da época e com o desejo de as suplantar, acreditava que o seu modo de trabalho beneficiava objectivamente o caminho e o progresso da ciência. Porém, a linguagem por ele utilizada, quando se tratava de difundir ciência, era poética e tocava profundamente nos espíritos mais sensíveis, atraindo-os e estimulando-os a usufruir da convivência com formas de existência plurais e a antever a vastidão de mundos possíveis.

— O antigo estudo dos padrões naturais para fins decorativos, ao ser aplicado em elementos ou objectos concretos, servia o propósito de trazer para o ambiente doméstico representações do mundo natural. Sem dúvida que estas representações animavam (ora pesando, ora aligeirando) a seca ortogonalidade das linhas arquitectónicas. Mas, mais do que isso, estas representações do mundo natural (que ainda não entrara em colapso) eram expostas para serem imitadas. Não se tratava de uma imitação intencional, direccionada a um cérebro imitador ou de uma fria “macaquice”, mas de uma aproximação intuitiva, à qual era difícil resistir. É certo que era à visão que as representações se dirigiam (e apenas excepcionalmente ao tacto e raramente aos outros sentidos). No entanto, pela conjugação um pouco misteriosa dos órgãos perceptivos, a memória transformava os motivos representados quando observados numa reminiscência de um tempo antigo, oferecia uma oportunidade de reviver uma espécie de comunhão com o existente em metamorfose.

— O estudo de observação de E. M. implicava contacto directo e para ele o estudo de campo era obrigatório. Por isso, investia na deslocação a lugares distantes, muitos deles inóspitos. O trabalho de atelier ou de escritório era, para ele, passivo e servia apenas para a transcrição das suas vagas observações de campo. E.M. escrevia para os jornais locais e dirigia cartas, com uma frequência absurda, a investigadores, naturalistas práticos como ele. Se por vezes escrevia poesia, escrevia-a na posição de cientista, como conhecedor da natureza humana integrada na natureza.

— A tradução para imagens, recorrendo à geometria (tal como me disponho), da qual resultam padrões, decorre muitas vezes de uma espécie de vibração intersectada não só pelos ouvidos (possuo uma audição deficitária), mas por todo o corpo. Este estado de recepção (sinestésico) evidenciou-se ao ler o estudo das térmitas de E.M..

— Como pode um ser sensível – dedicado à observação do natural, implicando-se no que observa, e reconhecendo o poder de influência que tem – transmutar-se integralmente ao ponto de esquecer a sua complexidade? Como pode, por instantes, subtrair-se do seu lugar de privilégio para dar lugar às vozes vibrantes? As vibrações são esquivas e apenas podem ser sentidas em estado de recepção total. Não é só na proporção, pela medida comparável, que a sua presença de observador se distingue, como também pela sua deslocação – talvez menos frenética que a maioria da totalidade do que observa.

— (Concluo:) Como necessidade essencial da observação, a desaprendizagem do observador e a desestabilização provisória da organização habitual dos seus sentidos.

— Dois corpos sensíveis enfrentam-se. O motivo de um (observador) é o conhecimento do outro (observado). O critério de escolha é a escala, uma escala relativamente próxima seria adequada. O motivo do outro é existir: multiplicar-se e sobreviver. Se outros motivos existem, são inicialmente desconhecidos. O motivo do primeiro corpo é conhecer o segundo – que não tem como motivo conhecer o primeiro, nem sequer tem capacidade de se conhecer a si mesmo. Para surpresa do primeiro que, em último caso, tem como motivo principal enfrentar-se nesta oportunidade de no outro tomar consciência de si mesmo.

—  As motivações dos corpos observados são descritas como que em luta pela existência. Uma luta que, na pausa do primeiro, se torna claramente num caos. Um movimento sem ruptura.

—  Cada corpo sensível é um animal composto de outros corpos. Os corpos sensíveis associam-se por casualidade ou por conveniência. Formam novas unidades cooperativas.

—  De um lado, um corpo-comunidade, do outro exactamente o mesmo, tomando como ponto de partida o facto de que todos os corpos são comunidades. O corpo é uma unidade definida por um invólucro, por uma membrana como é a pele. Essa membrana define o espaço ocupado por um corpo. Para reforçar a ideia de que um corpo é efectivamente um corpo, é necessário perceber nesse aglomerado de partes uma unidade (ainda que possa vir a ser provisória). A constituição dos corpos é a água. Um corpo é um saco de água com sacos de água.

— Cada corpo é formado pela casualidade do encontro de vários corpos, que abdicam da sua individualidade e se dedicam a uma função. Através das suas observações, E.M. queria provar que a antiga concepção de que mesmo os órgãos constitutivos do corpo humano tinham sido previamente órgãos individuais, corpos sensíveis com sistemas nervosos próprios, que tinham abdicado da sua auto-suficiência por interesse em fundar um corpo composto ou corpo-comunidade maior e mais complexo. Uma vez separados, a individualidade é restituída – embora seja preciso tempo para adquirir novamente esse estatuto.

— A linguagem poética de E.M. testemunhava as maravilhas de qualquer metamorfose, fazendo crer que as mudanças que ocorrem são demasiado incríveis para não serem conhecidas, dando ênfase às uniões de corpos sensíveis cada vez maiores, resultando da sua cooperação um corpo sensível extremamente complexo. Para ele, era claro um aspecto: na perda de união, as partes tornam-se temporariamente assexuadas.

— A comunicação entre corpos sensíveis semelhantes sumariza-se, de modo simplificado, pelos elementos que denominamos de cor, som e cheiro. É verdade que é assim que percebemos as suas expressões, mas estas são tão plurais que para as reconhecermos, ainda que uma parte muito restrita, precisamos de uma preparação extraordinária. Se em corpos dissemelhantes também existe comunicação, não podemos saber se não estivermos atentos às diferenças e se insistirmos apenas nas semelhanças. Devemos ter o cuidado de não projectar padrões, mas fazer um esforço por encontrá-los. Só então encontraremos paralelos entre as linguagens e as formas expressivas que as constituem. O estudo da nossa fisiologia é essencial para averiguar este ponto. Com toda a cautela temos que assumir que as formas expressivas superam sempre o nosso entendimento. Estas seriam capazes de nos enlouquecer se os nossos sentidos não fossem tão limitados.

— A acreditar na investigação dos naturalistas, a comunicação ocorre através de sinais. Os sinais podem ser designados de toques. Não exatamente como somos tocados com os limites dos nossos membros, mas como um estímulo global de uma vibração. Os sinais emitidos e as distâncias a que chegam mostram-nos como o sentido de toque é tão diferente do que concebemos como tal. O toque vibratório é capaz de animar, em diferentes graus de intensidade, toda a matéria intermediária até chegar ao seu destino sem, porém, aí se deter. O toque vibratório é contagiante e a comunicação ocorre com sucesso. Mas tal sucede por sucessivos erros (ou equívocos), ao ponto de se colocar em causa se se trata verdadeiramente de comunicação, uma vez que o toque pode ser interceptado, mas não entendido.

— A comunicação é um assunto sério entre humanos que idealizam o máximo de relações possíveis entre si e, assim, uma língua única. Todos os seres sensíveis são relacionais, mas até que ponto o são na extensão do humano? Todavia, superam-nos na sua função agregadora.

— O problema da linguagem como usada por E.M. está, por exemplo, na utilização do conceito de “trabalho” – entendido como o esforço constante para suprimir carências. O erro de percorrer este conceito à luz da nossa absurda e insistente forma de viver não pode ser aplicado aos restantes corpos sensíveis, que não vivem de acordo com os estilhaços de tempo fragmentado. 

— A interferência mínima, que a presença subtil faz sentir no prolongado estudo das dinâmicas de sobrevivência, observa-se na arquitectura, na engenharia, na organização de mútua cooperação e na dança. A linguagem oscila ao designar esta última, pois a dança é na actualidade vulgarmente vista como desperdício energético humano. Depois de várias observações, conclui-se que a dança pode ser enquadrada num número limitado de fins, apesar de tudo quase sempre restritos à sexualidade. Há, porém, naturalistas que vêem na dança dos corpos sensíveis um simples movimento enquadrado nos restantes, e que apenas pelo excesso é capaz de captar e seduzir a atenção dos seus semelhantes, sem, porém, ter o efeito de um estímulo significativo. Seria arriscado definir todos os fins deste movimento (tão igual aos outros do mesmo corpo) se não nos dispuséssemos, tal como referido, à observação. 

— Toda a sensação de dor salvaguarda a morte – é um mecanismo defensivo que ocorre ou é induzido, exceptuando a do nascimento. A dor da reprodução traduz-se em amor – obsessão de E.M. pelo amor materno e pela função reprodutora.

— A luminosidade própria da natureza, num brilho, ao qual o observador é já cego. Tornam-se luminosos os corpos animados pelo movimento e distribuem luz.

2018