Berlim, Julho de 2013
Não é possível distinguir claramente, por entre as cinzas da destruição, num nevoeiro constante, o que se estabelece como opositor nas revoltas surgidas por toda a parte, nem tampouco discernir uma única e inequívoca direcção a seguir. Será este o momento em que falham não só os modelos antigos de revolta, mas também os meios de entendimento e de actuação? Será este o momento em que, ocupando o vazio deixado pelo caos ideológico, uma comunidade se constitui espontaneamente, na qual se abandonam as subjectividades num êxtase colectivo que vem substituir uma certa dormência anterior? Será, ainda, este o momento em que, na comunidade constituída, – sem projecto ou alternativa a propor, ou desejo de governamentação de um poder que substitua outro poder – cada um se integra pela sua condição, comum, de ser mortal, finito? Haverá uma necessidade nisto mesmo, no esquecimento de si para um “estar em conjunto” no excesso, numa cegueira que se traduz em movimentos incontroláveis, violentos, sem norteio? Será, enfim, esta a comunidade temporária, que na sua unidade indivisível relembra uma comunidade originária – uma união entre todos os seres?

A este momento segue-se um outro em que a comunidade se separa e em que se estabelecem distâncias entre os seus membros. Nessa altura, em cada membro da comunidade, na sua subjectividade, instala-se a ansiedade de expressar/comunicar a experiência de união vivida. Cada subjectividade procurará através de um produto-obra (resultado da necessidade de expressão/comunicação) ocupar essa distância (espaço) que a separa das outras subjectvidades e, ao afastar-se, acreditará que se aproxima e que pertence novamente à comunidade. Ao fazê-lo, “dá conta de si” mesma – responsabiliza-se pela sua expressão – num plano que é sempre, por exigência, ético e de relevância ética. De certo modo, é obrigada (sem alternativa) a expressar/comunicar para existir, a estabelecer relações dinâmicas, para que com isso se estenda a esperança de encontro da comunidade. Porque é a partir da/e para a comunidade que o faz. A comunicação é, então, um espaço de diálogo entre subjectividades, permitindo o reconhecimento não só da sua própria diferença (diferenciação processual), mas também da diferença da outra subjectividade. É um espaço idealmente não de assimilação (fusão ou consolo da sua solidão – espaço curto), mas de mútua contestação, alargando o espaço existencial. Este espaço não é mais do que um vazio que o produto-obra procura ocupar, um espaço este de crítica, que provoca e aumenta a diferença, a desigualdade, a dissimetria. A comunidade revela a sua heterogenia. E expõe-se como tal.

[É o caso, por exemplo, da comunidade  composta pelos manifestantes nas ruas ou, mesmo, a comunidade dos amantes  ou dos amigos, que, quando separados, se entregam a preencher a ausência, comunicando-se]

Este exercício de reflexão surge de um plano de trabalho elaborado precisamente com o objectivo de tratar o espaço que é ocupado pela expressão da subjectividade (sempre em transição), uma subjectividade que reflecte sobre si mesma pela necessidade de responder ao apelo de “dar conta de si”. Um plano que tem vindo a ser desenvolvido ao longo dos anos e que encontrou, neste preciso momento, uma oportunidade para se clarificar.

Sendo o espaço deixado pela distância da comunidade simultaneamente o espaço essencial para a ela se voltar, elegeu-se como primeira leitura o livro de Nathalie Sarraute, “Tropismos” (tropismos é um conceito recriado, reactivado das ciências e da filosofia), que reflecte, de certo modo, sobre a ocupação desse mesmo espaço. Neste livro, são descritos os movimentos que ocorrem no interior de uma casa, mas que, na verdade, são movimentos do corpo (na sua complexidade) que oscila entre as relações do interior e do exterior. Estes movimentos encontram-se no limite da consciência – fugazes, intensos, determinantes e determinados –, sendo, no fundo, comuns ou mesmo banais. A atenção dada aos movimentos aproxima-se mais de um conjunto de políticas do espaço, que se evidenciam na experiência do espaço como uma sucessão de gestos (performances, coreografias). A descrição é descentrada dos espaços em si e dos objectos que eles contêm. Estes (espaços e objectos) só se destacam através da acção sobre eles e da sua própria acção sobre quem os habita ou sobre quem com eles interage. O que se revela como mais importante não são, portanto, nem a fisicalidade objectual/espacial (o espaço exterior), nem os caracteres definidos dos personagens (um interior definido), mas antes o que acontece – as suas acções/reacções, ponderadas entre o exterior e o interior. Em “Tropismos”, a autora “dá conta de si”, através da sua escrita ou da sua expressão, privilegiando o espaço mental, que se amplia. De certo modo, a descrição dos movimentos reflecte sobre os próprios movimentos do pensamento e a escrita não é mais do que uma reflexão sobre o acto de escrever – que elege da experiência as linhas geográficas que lhe parecem mais proeminentes. Assim, ela promove a sua própria distância, ao mesmo tempo que, através do seu produto-obra (no final, o objecto livro), possibilita a aproximação ao(s) possível(eis) leitor(es) ou leitora(s) – às subjectividades outras a(às) que(quais) se dirige, que lêem e que em si retomam a(s) experiência(s).

Numa pequena entrevista (Paris Review, The art of fiction No. 115), Nathalie Sarraute expõe-se no processo de trabalho. Neste documento, a escritora refere-se à ausência de universo (pessoal, à partida, já formado) a ser explorado e ao vazio existencial constante a que é votada, vazio esse que é habitado cada vez mais pela observação atenta do fluxo de onde emerge a sua subjectividade, ordenando as sensações e transformando-as em escrita. Sem apego à identidade (ou à fixidez da mesma) ou mesmo a um estilo, mantém-se fiel a uma estrutura que passa precisamente pela perda de ambos. Opondo-se à repetição de produtos e de subjectividades como produtos a consumir. Sem receio de ser constantemente renovada, de se deixar renovar.

Recebendo o estímulo dos dois textos de Nathalie Sarraute, “Tropismos” e a entrevista, o desenvolvimento do plano de trabalho decorreu da atenção dada aos movimentos, recolhendo deles uma metáfora: o elemento ar e, na sua dinâmica, o vento, como elemento impulsor desses movimentos. A relação ar/vento, por sua vez, fora pensada como metáfora da expressão ou comunicação da subjectividade, partindo da observação mais simples: a da circulação do oxigénio, entre inspiração e expiração – na ventilação/transacção entre interior e exterior – que é tão vital como a própria expressão para cada subjectividade. Por outro lado, o par ar/vento carrega consigo oportunidades tanto de acaso, como de ordem (ou de anulação desse mesmo acaso). Entregar-se ao acaso, e inclusivamente promovê-lo, constitui-se como essencial para a abertura da subjectividade à comunidade. Ou seja, a subjectividade que dá “conta de si” fá-lo (ou procurará fazê-lo) em primeiro lugar posicionando-se fora dos seus limites. Na sua expressão/comunicação, dará ordem (ao acaso) ao encontrar uma forma (comunicativa) de o fazer e retomará a experiência de estar em conjunto.

Estando o trabalho a ser desenvolvido no centro da Europa, em Berlim, e uma vez que a geografia (cultural) de quem cria/escreve se situa no extremo da Europa e mais próxima do continente africano, viajou-se até ao norte de África. Quis-se sair geograficamente de um continente procurando além o outro continente de diálogo. Era uma questão de continente, de ser continente, de conter – como um corpo e de o expor a uma nova/outra experiência, transgressiva. O destino preciso da viagem ao Norte de África não estava ainda definido e, por um acaso informático, Essaouira, uma vila com uma forte ligação histórica a Portugal, foi escolhida. Foi aceite este acaso. Como experiência que pudesse ter como benefício a abertura da subjectividade ao “outro”. A viagem teve como consequência a transformação da (tres)passagem de continente e do reconhecimento, no confronto, das diferenças. Numa tentativa constante de encontrar associações inesperadas e de revelar novas relações (que naturalmente surgiram), as torres de ventilação características da arquitectura árabe, que haviam sido um dos propósitos da viagem, mantendo-se sempre em vista, tornaram-se também elas metáfora do corpo como espaço ventilado – sujeito a mudanças, a orientações, recebidas por estímulos difíceis de identificar e de justificar. Porque é sempre um corpo, na sua totalidade, que recolhe a experiência e a expressa; é, pois, em relação a ele que se insiste.

Seguindo as imagens usadas pelos poetas árabes sufistas, o corpo afigura-se como uma flauta através da qual se expressa a divindade – ou, numa perspectiva laica, se actualiza o mundo/universo. Retoma-se aqui um sentido místico que trespassa culturas: a subjectividade que se esvazia, que em certa medida se entrega ao acaso, para se deixar preencher (receber), o que não é mais do que uma inconstância da subjectividade, em formação. Ainda que não se trate da passividade de um deixar-se actuar apenas, mas de um misticismo activo, como aquele encontrado num poema sufi: não basta acolher o vento, mas mudar-lhe a direcção. Precisamente porque ao acolher o acaso dele se faz necessidade.

Tal como a viagem foi um “tropismo”, uma direcção nova que se tomou, também ao nível da expressão se quis usar (e pensar) a noção de tropos – através de um conjunto de metáforas e metonímias. Na viagem foram recolhidos materiais mais tarde utilizados – os pigmentos específicos da região, como a púrpura tíria (a cor imperial) e os ocres, que abarcam as cores do Oceano Atlântico e do deserto – misturados com argilas. Estes são resquícios do percurso, do fazer-se geografia, da experiência monádica, estabelecendo relações com a geografia e dela fazendo matéria de reflexão.

No regresso, e em sequência da experimentação dos materiais, utilizaram-se também produtos de maquilhagem, mais especificamente base cor da pele (matizes de bronzeado) em pó sobre papel, através da qual se quis associar os suportes de desenho e a pele como superfície através da qual um corpo respira, fazendo transferências através dos poros, entre exterior e interior. Com este material fizeram-se “paisagens” abstractas ou esquemas abstractos de coreografias, que remetem para múltiplos movimentos, ainda não ordenados, precipitados, como se fossem o movimento de subjectividades excedidas – evocando a comunidade no início referida. A utilização destes materiais remete também para a apropriação de novas tecnologias (inerentes à sua produção) que, no entanto, não se reconhecem como tal no quotidiano. São também tecnologias ainda estranhas às artes visuais, mas que se incluem aqui, ao se pôr em diálogo a contemporaneidade com a tradição da pintura e do desenho. 

Contudo, o núcleo central do plano de trabalho foi a escrita de pequenos textos, frases curtas e intensas, associadas através de um jogo definido por regras simples, o que permitiu espacialmente a ocorrência do acaso. Este tornou-se absolutamente necessário. O momento da construção do texto, o seu processo, foi uma experiência de intensidades geográficas propostas através da escrita e é isso que se procura aqui oferecer do mesmo modo. A temática que percorre os textos é precisamente a dos movimentos nos espaços em diferentes escalas e em diferentes lonjuras. As linhas (frases) são como as linhas traçadas de indicação de percurso num mapa imaginário, no qual se vai de um ponto ao outro para se aproximar de uma breve conclusão (síntese) ética, que está em aberto e que se propõe como objecto de reflexão e de reactivação de sentidos outros, múltiplos, a quem vê/lê. São estas linhas que, procurando tudo abarcar (e dar conta), apenas o fazem no limite do possível. A acompanhar as frases surgiram imagens - em relação de complementaridade - derivadas dos cilindros (torres) dos “espanta-espíritos” (wind chimes), nos quais o vento se faz sentir. Como se em cada frase um espírito ou um novo destino estivesse para acontecer. Através deste objecto metonímico, quis fazer-se uma síntese da compreensão do universo, sendo que cada gesto, em acção, em movimento, muda o todo. A expectativa de que nada mexa, de que tudo se imobilize por um instante trocada pelo oposto. Procurou-se, assim, na complementaridade das linguagens, visual e verbal, a melhor forma de expressão da subjectividade na sua complexidade, acreditando igualmente que esta seria a melhor forma de regressar à comunidade.


No uso da capacidade (ou necessidade) comum de se exprimir, a subjectividade exprime-se sempre, porque para isso é convocada, ainda que possa não ser captada e falhar em comunicar. Ou seja, pode a expressão revelar-se desadequada em relação à expressão/comunicação expectável. Não é, portanto, reconhecida e intersectada pelo(s) outro(s), sendo consequentemente incapaz de estabelecer com a comunidade uma ponte. O espaço que deveria, em verdade, ser ocupado por movimentos – porque a comunicação é um conjunto de relações dinâmicas que se desenvolvem – é preenchido de alguma maneira com o que mais de imediato se lhe apresenta (o já reconhecido, o estático). O sistema actual sobrevive da ilusão da capacidade de (re)invenção das subjectividades, dos seus desejos, em função do mercado e do capital, mas não assume expressões como válidas (não só pela expressão em si, mas pelo conteúdo), excluindo assim subjectividades. Estas têm dificuldade em se produzirem a si mesmas, porque estão fora da comunicação com o outro (comunidade) - que é condição necessária ao seu desenvolvimento e diferenciação. A conquista de expressão – e de modos de validar a expressão escolhida – é, portanto, um programa/projecto de resistência, tanto como de sobrevivência.

É claramente o privilégio dado à expressão/comunicação verbal que assegura o reencontro com a comunidade. É essa expressão, com as suas leis, a sua normatividade, que tem o poder de dotar as subjectividades da sua existência, ainda que reconhecendo que é uma expressão entre tantas outras e que, por isso, elege subjectividades entre tantas outras subjectividades prováveis, determinando a possibilidade (ou impossibilidade) do seu desenvolvimento. Mas é também esta expressão, por ser dominante, que poderá ser usada, transformada, como um canal aberto, tanto de integração como de fuga (e, logo, de denúncia). A expressão verbal, ao ser usada através de processos de agressão às suas próprias leis instituídas, permite que se possa opor à normalização das subjectividades e, por isso, possibilita a expressão da excepção da subjectividade.

O que se procurou, pela subjectividade que reflecte sobre si mesma, no desenvolvimento de plano de trabalho, foi reconhecer a insuficiência no “dar conta de si”. Retomando a entrevista a Nathalie Sarraute, a escritora refere-se ao conselho de Jean-Paul Sartre de que escrevesse um prefácio para “Tropismos” (dizendo-lhe, inclusivamente, que persistindo no estilo escolhido para escrever os “Tropismos”, acabaria por sacrificar a própria vida). Um prefácio como uma distância, uma extensão (mas também uma aproximação), demonstra a insuficiência da expressão verbal precisamente quando dentro desta é proposto um novo estilo de escrita que não seria reconhecido. Assim, quer o produto-obra decorra dentro de uma só expressão/linguagem, quer dentro de uma complementaridade das expressões/linguagens, os produtos-obra são sempre ressonâncias da criação – ou seja re-criações, movimentos – que se abrem, tornando-se espaços de reencontro. A expressão que se procura comunicativa estará sempre aquém da complexidade da subjectividade. Mas é a insuficiência (a carência) que promove os movimentos, sendo, como o vento, motor de continuação – de tropismos, que perpetuamente acontecem por toda à parte. Porque é precisamente a insuficiência – a nossa própria condição – que faz de nós comunidade.
2013