CARVALHO, Isabel — Text for the handout of the exhibition Museu Mineiro


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Um Museu Mineiro

Passámos, no dia a dia, por janelas como as dos comboios, das casas e daquelas outras onde procuro agora pesquisar sobre o tema “nuclear”[1]. São janelas de vidros emoldurados, preenchidas com configurações oscilantes de luzes e cor, em rápidos movimentos a revelarem realidades fugazes. Ao abri-las, sucessivamente, recebo uma explosão de partículas que me dão diferentes perspetivas, depoimentos e imaginários que vêm de longe[2] e revelam que o nuclear é algo de muito pouco concreto, que não se vê, não se toca, que tudo trespassa de forma discreta e que é factualmente letal. Por constatar estas características, sob uma espécie de atrativo vertiginoso, procuro compreender o alcance das suas manifestações. O aparato discursivo em redor do “nuclear” é efetivamente gigantesco. Agarro somente um pequeno pedaço e iludo-me ao pensar que posso estar perto de compreender o potencial das suas várias dimensões e escalas, pois as janelas, ainda que translúcidas, são simulacros, enganos do olhar e há (sempre houve) pouca transparência na mediação deste assunto. Por esta via, assisto apenas a um fluxo de dados que é nocivo quando a informação não é exata. Além do mais, a perspetiva que cada janela nos dá é apenas um fragmento. Mas é possível que a abordagem mais apropriada a esta invisível e impalpável materialidade seja a de ir acumulando pequenas partes – fragmentos – para poder criar um tipo de mosaico e fazer um pouco de reconstituição histórica.
   
É provável que falar do “nuclear” a partir de janelas me tenha surgido da impressão causada precisamente por ter lido um pequeno depoimento de quem, através delas, testemunhou o espetáculo provocado pelas explosões nucleares que, de início, lhe terão parecido algo mágico, semelhante a um fogo de artifício festivo, de luzes e cores visualmente atordoantes, mas que depois sentiu de perto a morte provocada pelo efeito radioativo nos corpos e como estes apodreceram silenciosamente[3]. Certo é que há, desde o início do seu uso, uma aproximação entre o aparato nuclear e a estética[4].

No atual contexto de guerra, presenciamos a ocupação das principais centrais nucleares da Europa e sucessivas ameaças, que nos convocam, geracionalmente, a revisitar o passado sob este perigo, como se se tratasse de um derradeiro imaginário de fim do mundo, de erradicação humana, que nos parece, por irónia, finalmente coeso e familiar. É uma situação globalmente aflitiva porque sabemos já o suficiente sobre o que está em causa e quais as consequências para a vida neste planeta. O meu esforço tem sido dissolver o medo (sentimento tão presente e instrumentalizado quando se fala em “nuclear”), ao voltar a atenção para dentro: quer para o corpo, quer esse mesmo corpo localizado num determinado espaço. Comecei por formular uma pergunta que me servisse de orientação: qual o envolvimento (político), largamente assumido como neutro, desta “nossa” posição geográfica? Lembrei-me, por momentos, que no princípio deste século XXI, durante vários anos, passámos, eu e a minha família, férias num hotel localizado mesmo em frente às minas desativadas da Urgeiriça, em Viseu. Por essa altura, aquela localidade aparecia nas notícias televisivas pelos sucessivos boicotes da população às urnas durante as eleições. Esta memória é agora avivada e assume contornos muito concretos. Este ano quando regressei à Urgeiriça, vi as mesmas ruas, já antes desertas, mas agora pontuadas por bandeiras negras e lonas reivindicativas. A população mineira da Urgeiriça reclama um Museu Mineiro que cumpra a justiça histórica, que confirme os danos sofridos nos seus corpos negociados por pouco, que tanto contribuíram para o avanço tecnológico e para a eventual produção de armamento nuclear. E é esta a imagem que fixo, de desejo coletivo de repor a verdade e de contar uma outra história. A indignação é justa: pela escassa informação que circula sobre os danos que resultaram do período de exposição radioativa, pelo abandono político daquele lugar e das pessoas que ali construíram as suas vidas, pela incerteza do futuro...

Em Portugal abundam exemplos semelhantes, porventura menos mediáticos comparativamente às zonas geográficas de outros países onde ocorreram acidentes nucleares, pelo que se comprova que também neste assunto, sob o discurso de (falsa) “neutralidade”, nunca é oportuno rever o passado.

No artigo publicado em 2018, Carnation Atoms[5], a questão “nuclear” é associada ao despotismo do Estado Novo – que não só vendeu o urânio extraído em território português como esperava vir a utilizar os recursos das colónias do império –, e aí é referido que são as epistemologias civis que emergem já na democracia que são vistas, com otimismo, como as verdadeiramente “antinucleares” ao fazerem frente ao “núcleo” de um poder centralizado. O “Festival pela vida, contra o nuclear” (1978), decorrido em Ferrel, é o caso paradigmático que ilustra como a mobilização popular, à qual se aliaram cientistas (e não astrólogos, hippies, como se disse para deslegitimar a mobilização), contra a instalação de uma central para ali prevista venceu. Facto é que não temos centrais nucleares como a vizinha Espanha, mas assume-se como “lírico” pensar-se que foram de facto as populações locais, os anteriormente apagados da História, que conseguiram demover o governo já democraticamente eleito da sua decisão, pois, afinal, também esse governo seria favorável à opção nuclear eventualmente como marca da sua posição modernizada –seguindo a opinião de que um país não nuclearizado é um país subdesenvolvido, uma vez que um país de reservas não as usa necessariamente em seu proveito. Inquestionável é que a mobilização popular teve uma forte influência nos imaginários nucleares, esclarecendo-os, obrigando-os a ampliar os seus limites e principalmente erradicando as ardilosas mentiras assentes no medo, na necessidade de proteção (o famoso “átomo da paz”, em plena Guerra Fria) e nos seus outros duvidosos benefícios. Já nada passaria sem uma contra-imagem que propusesse repor a verdade dos factos. As epistemologias civis formaram-se efetivamente da fragmentação, do estilhaçar do “núcleo” – da anterior centralidade do desígnio coletivo não autodeterminado. Com efeito, assumir uma posição antinuclear é pensar-se em conjunto, democraticamente, e quando urgente formar alianças.

Para esta exposição, que apresento como um momento a ter continuidade[6], considerei particularmente interessante atender às mudanças epistemológicas e, inevitavelmente, às mudanças percetivas, às visões e aos imaginários que refletem uma posição combativa do(s) corpo(s), principalmente na frente “antinuclear”. Numa afigurada explosão do real a par da implosão dos corpos – na perceção de si mesmos, das suas subjetividades, que confirmem uma mudança para uma espécie de (sobre)vivência solidária, podendo servir para modelar imaginários sobre o nuclear – quis criar peças que pudessem ser associadas à memória e de como somos assombrados pelos factos passados. Visivelmente, estas peças (re)apresentam tanto “coisas” (ossos e pulmões, sóis, fungos, túneis, etc.) como ainda a matéria de que são feitas e os seus conceitos, resultando em algo com uma larga margem de imponderação. A minha proposta é prosseguir a partir daqui com exercícios de ficção literária, ampliando os meios e o espaço de reflexão do processo criativo.

Porto, agosto de 2022.
Isabel Carvalho


[1] Tema da próxima revista Leonorana – um projeto editorial que mantenho desde 2017 – que está, neste momento, a ser trabalhado pela equipa editorial composta por Vanessa Badagliacca e que conta com o apoio de José Carlos Marques como consultor.
[2] O conceito de átomo surge já na Antiguidade, embora tenha sido pensado de modo diverso.
[3] Alexievich, S. (2016). Vozes de Chernobyl: história de um desastre nuclear. Tradução de Galina Mitrakhovich. Lisboa: Elsinore.
[4] Quando se fizeram os primeiros testes em território americano, sob o nome de Trinity, o físico responsável pelo projeto, Robert Oppenheimer, descreveu o “espetáculo”, enaltecendo a conquista científica e minimizando os efeitos nefastos derivados das explosões, a partir da lembrança de um poema hindu – Se o brilho de mil sóis/ irrompesse de uma só vez no céu,/ isso seria como o esplendor do poderoso. A comparação poética, na comunicação pública da ocorrência como sendo do âmbito do sublime, poderá causar hoje indignação, mas na altura terá passado incólume.
[5]  Pereira, T. S., Fonseca, P. F. C., e Carvalho, A. (2018). Carnation Atoms? A History of Nuclear Energy in Portugal. Minerva.
[6] Precede a esta exposição, o evento realizado em junho deste ano, na Gruta — um projeto do artista Hugo Canoilas para a Galeria Quadrado Azul em Lisboa – quando escrevi, li e publiquei, em formato de cartaz, um conto intitulado A Comunidade das Grutas... Novas descobertas sobre o envolvimento de Portugal nas políticas internacionais de nuclearização.
2022